julho 08, 2004

Menosprezar Santana

Eu penso sempre que o cenário vai piorar. Geralmente, piora - embora, felizmente, me engane muitas vezes, o que é uma vantagem que só os pessimistas conhecem. Acontece que esta dúvida que atormenta os analistas e parte dos portugueses (sobre a decisão do presidente e sobre Santana ir a primeiro-ministro) coloca bastantes problemas sobre a própria natureza da política e do seu exercício. De resto, há muita coisa em jogo. Para a Esquerda, o ónus da prova: dizer que a sua vantagem nas ruas e nas europeias pode transformar-se em governo, depois de Durão Barroso malbaratar dois anos em São Bento, com uma aliança PS/BE. Para a Direita, a estabilidade dos contratos e a tentação de começar de novo, e sem o tom depressivo do "país de tanga". O problema é que nunca se começa de novo - há sempre um rasto de misérias a colar-se como uma maldição. A Direita nunca "começaria de novo" com um governo de Santana. Ele sabe.

Mas há também alguns pontos essenciais que a "intelligentsia" tem menosprezado, como acontece habitualmente. A primeira reacção foi a de incredulidade e a reacção teve a sua graça, contada nos jornais: "Santana Lopes, primeiro-ministro? Peço já exílio em Marrocos!" Depois, as pessoas habituam-se; a brincadeira tomou outro aspecto e já ninguém vai para Marrocos. Pelo contrário, ficam em casa a cuidar do futuro. Viu-se em Lisboa, nas autárquicas: uma gritaria, escândalos e gente que ameaçava despedaçar a farpela, um realizador de cinema que quase prometia imolar-se pelo fogo e uma actriz medíocre que organizou protestos. A reacção escandalizada é chique, dá bastante prestígio nos círculos bem-educados - e fortalece Santana Lopes. Ele sabe.

Lembro-me de uma daquelas idas do prof. Marcelo à TVI antes das autárquicas: que "a intelectualidade" não gosta de Pedro Santana Lopes, que o considera um demagogo volúvel. Ele tinha razão mas, sem querer (seria?), destacou uma vantagem perversa. Acontece que o país também não gostava da "intelectualidade" de que dispunha: "a intelectualidade" era um perigo, com o seu ar superior, as suas indignações, a sede de prestígio, os filmes mudos, a literatura incógnita, os dinheiros que recebe. Santana Lopes aflige-a (à "intelectualidade") como se a sua existência fosse um jejum da cultura: aflige-a que Santana Lopes troque os títulos dos livros e o nome das peças musicais, o seu passado de homem do futebol, a sua herança de sedutor com um rasto de hipotéticos corações destroçados. E, portanto, Lisboa - a Lisboa defendida com as unhas, os dentes, as garras e o sangue da "intelectualidade" e da "opinião esclarecida", essa Lisboa - deu-lhe a Câmara. Tão simples como isso. E ele sabe.

Estamos a assistir a um disparate exactamente igual: basta ver a Esquerda mais pernóstica e moralista (lembram-se quando a Esquerda reaccionária fez campanha contra Sá Carneiro e a sua relação com Snu?) - que ele é volúvel, um Don Juan lisboeta, um acelerado, não respeita as instituições. Vantagens para Santana Lopes. E ele sabe.

Eu sei que há problemas sérios a pairar: se não houver Governo, teremos duodécimos para as autarquias (em ano de eleições, caramba!) e para os contratos do Estado; teremos menos decisões na economia e mais gritaria na rua, uma longa lista de interrupções. Ele sabe a quem imputar responsabilidades.

Mas há um pormenor importante. Caso haja eleições, Santana Lopes vai disputá-las em pleno, de caras, em nome da radicalização em que Portugal mergulhou. E aí não sei. A "opinião esclarecida" tem as eleições por garantidas; mas eu, se fosse a Esquerda, não menosprezaria Santana, nem confiaria no exorcismo do diabrete. Ele também sabe isto.

P.S.: A eng.ª Pintasilgo, vinda do Além, ressuscitou temporariamente para anunciar que esta é a pior crise desde 1974. O país tremeu.

Jornal de Notícias - 8 de Julho de 2004