julho 29, 2004

O deserto à volta

O dr. Mário Soares acha que os políticos "que andam aí" não merecem grande consideração. Vamos e venhamos: ele tem razão. São fracos. Eu li a entrevista de José Sócrates no "Expresso" e achei que tinha sido um mau momento - e que não aparecera uma ideia genuína ou importante, nem como político nem como candidato ao cargo de secretário-geral do PS, o que, dadas as circunstâncias de estarmos a dois anos de eleições, também garante um lugar na disputa pelo de primeiro-ministro. As intervenções de Manuel Alegre como putativo líder do PS também não são brilhantes, só que não se trata de um jovem. Mas o lamento de Mário Soares não é apenas em relação a José Sócrates, o presumível herdeiro do guterrismo que o ex-presidente tanto abomina.

Junto com José Sócrates, vêm vários políticos que não fizeram o 25 de Abril, não privaram com a herança republicana nem participaram nas várias clandestinidades. Para a geração de Mário Soares, essa exigência também pode garantir, à partida, um passaporte para a eternidade da democracia; os outros podem conquistá-la com muita veneração aos heróis da República, entre os quais se encontra o autor de "Portugal amordaçado". Eu aceito o jogo: Mário Soares é um pilar do regime, figura incontornável da nossa História recente. Votei nele uma vez e festejei a sua eleição porque não queria "um governo, uma maioria e um presidente". Mais do que um pilar do regime, Soares é um dos seus emblemas. É imensa a sombra que projecta sobre o palco - o que cria, à sua volta, uma certa sensação de deserto. Todos admitem que Soares tem uma energia política fora do comum. É verdade: essa energia transborda, é imensa, distribui-se por uma intervenção de qualidade mediana (nunca escreveu muito bem) mas de efeitos francamente devastadores (o que suponho ser o seu objectivo), ou por debates brilhantes onde a realidade acaba por ser ludibriada por muitos anos de prática. Além disso, elege com precisão os seus adversários e é muito mais meticuloso a escolher os seus inimigos. O artigo que dedicou a Durão Barroso, então, é brutal; nele confluem a animosidade e o carácter do velho presidente. Estou convencido de que Mário Soares gosta disso.

Liberto de obrigações, disponível porque a idade e a biografia lho garantem, Mário Soares voltou a ser o socialista que nunca encerrou o socialismo na gaveta e que não está obrigado a evocar a verdade, longe disso, em todos os momentos. Eu acho bem: "passar à disponibilidade" é uma assinalável prerrogativa da idade, e permite que haja mais liberdade de estilo, o que explicaria muitas das opiniões do ex-presidente nos últimos dois anos - ou seja, não está para se maçar com contemporizações. Acontece na tropa e, portanto, ocorre na vida civil.

Quem se dá ao trabalho de ler as crónicas do antigo presidente da República notará, no entanto, que esse "sentimento" de que os novos políticos são tão frágeis como Santana, tão inconsequentes como Portas ou tão-pouco socialistas como Sócrates, não vem sozinho; a palavra vem acompanhada de um prefixo: "ressentimento". E esse é o pormenor fatídico num homem que sempre insistiu no facto de a política ser mais importante do que os orçamentos e de que as pessoas contam mais do que os défices. Nisso, eu concordo.

Mas a ideia de que tudo o que escapa ao controlo do seu farol de influência está condenado desde o princípio (ou, pelo menos, a meio), parece-me perigoso e nefasto. E, mesmo que assinalemos a sua presença definitiva entre os heróis da República, é preciso que alguém o contrarie nem que seja como um exercício de retórica.

Jornal de Notícias - 29 de Julho de 2004