agosto 12, 2004

O acordo do regime

Parece que o país fervilha de indignação, o que tem sido um dos dois estados anímicos mais vulgares no seu comportamento dúplice - o outro é a depressão quase profunda. Na verdade, bem lá no fundo, o país não está propriamente indignado - mas fervilha de alguma maneira. Quem se indigna são os colunistas, alguns comentadores e parece que a Oposição; o país, não; o país está em Agosto, o que significa que não está cá. De resto, o país já está habituado a esta história mal contada do processo Casa Pia: habituou-se às gravações ilegais ou conformes aos códigos, habituou-se às demissões de titulares de cargos públicos, às exigências de transparência, às meias-verdades, às primeiras páginas, à linguagem dos juristas na televisão, aos murmúrios sobre listas de suspeitos fabricados conforme as circunstâncias, habituou-se - finalmente - a desconfiar. Se há coisa que pode identificar o país, é essa palavra pouco nobre, pouco solene, triste e desgraçada: desconfiança. Enquanto alguns se indignam, o país desconfia; é esse o seu estado de alma. Tem todas as razões para isso, aliás. Os maus exemplos vêm de cima, como quase sempre acontece (os bons exemplos não fazem audiência): processos mal contados, intriga, frases arrastadas para as primeiras páginas com a subtileza de um elefante, mediocridade, vulgaridade, manobras à porta do tribunal. Portugal transformou-se num país "judicializado", cheio de especialistas em processo penal, dominado pelo discurso dos juristas e transtornado pela desconfiança.

O caso das "gravações da Casa Pia é o mais recente capítulo desse transtorno. Ao que se sabe, as gravações existem; além do mais, foram roubadas (o que não é propriamente um "pormenor"); depois, circulam - o que significa que uma certa percentagem de gente as ouviu, que uma outra percentagem não ouviu mas diz que ouviu.

O facto de o ex-director da Polícia Judiciária ter sido "queimado" por essas fitas é, apenas, um pormenor no meio da barafunda e do vasto conjunto de armadilhas que transformaram o processo Casa Pia numa monumental teoria da conspiração sobre os políticos, os tribunais, os magistrados, os advogados, os arguidos, os suspeitos e as vítimas. Parece que o que está em causa é o famoso "segredo de justiça". Não é apenas o segredo, mas também a forma pouco nobre e absolutamente abjecta como a ideia de justiça desapareceu do processo, juntamente com as cassetes, a memória das testemunhas ou as suspeitas infundadas. O processo está desacreditado e o país tem toda a razão em desconfiar dele.

O senhor primeiro-ministro ofereceu-se, anteontem, para um acordo de regime sobre justiça. Talvez a iniciativa seja meritória, mas eu - como o país - desconfio e acho que é uma inutilidade. Parece que o que está em causa, ou subjacente à oferta de pacto de regime, são questões do código penal e do código de processo penal - e não a justiça propriamente dita.

Sobre os códigos, o Parlamento que trate do assunto, e rapidamente, páre com as queixinhas. Sobre a justiça (ou a Justiça), espera-se que a lei seja respeitada e que os «seus agentes» trabalhem de acordo com as regras. Isso é que era um grande acordo de regime.

Tudo isso será certamente impossibilitado pela forma como a investigação policial é analisada em directo, como os processos vão parar às mesas das redacções, como os telefonemas privados são tornados públicos, como a promiscuidade e as regras de favor são protegidas. Nada de escândalo; é assim há anos. Por isso, o verdadeiro acordo de regime era esse: obrigar a cumprir a lei e haver gente decente a cumpri-la.

Jornal de Notícias - 12 de Agosto de 2004