setembro 16, 2004

Futebol, já

Se bem se lembram, oito dias depois da final com a Grécia (já não se lembram, não é?) já os portugueses - e as portuguesas, como dizem os políticos, nas suas declarações públicas - pensavam na "crise política" e na formação de um novo Governo. Mas algumas coisas ficaram: as bandeiras penduradas nas casas e presas aos tejadilhos dos carros, os nomes dos jogadores e, sobretudo, esse nome estranho e confuso gritado em estádios, ruas, supermercados, repartições, pracetas, bombas de gasolina: "Portugaaaaaale!"

Como vi a maior parte dos jogos fora do país, ao regressar à Pátria, na altura, vi-a completamente modificada. Em primeiro lugar, nunca julguei que fôssemos tantos - nem tantas. Tinha saído de Portugal e sabia que éramos vagamente uns milhões; uns milhões tímidos, mas uns milhões. Quando regressei, éramos já uns milhões valentes e decididos. Multiplicámo-nos. Sobretudo as mulheres - multiplicaram-se. Eu sabia que havia bastantes e que o seu número era superior ao dos homens, mas não imaginava que fossem tantas, tão efusivas e tão explícitas. Há muito tempo que não via tantos umbigos de portuguesas pela televisão: redondos, morenos, cavos, quase lisos, dissimulados por piercings, gordinhos, pálidos, esticados, mas umbigos. E decotes, sim, a televisão revelou os decotes portugueses e comuns, acessíveis, compreensivos, extensos, francos, com donaire, desembaraçados, indiciando - peço perdão pelo meu olho lúbrico - seios generosos, destemidos, espirituosos, magnânimos, elegantes, matreiros.

O outro reduto a ser ultrapassado foi o controlo da televisão. Até aqui propriedade exclusiva ou prioritária dos homens, houve casos em que assistimos a uma alteração radical do equilíbrio de forças nas famílias portuguesas. "Deixa-me ver o Telejornal…", pedia o marido. "Nem penses, quero ver o República Checa-Alemanha", dizia ela. Voltava ele: "Mas ninguém se interessa pela Alemanha, não é do nosso grupo." Ela: "Interesso-me eu pelos checos, há aquele jogador de pernas rápidas, o Baros, marcou não sei quantos golos. E é pena que o árbitro não seja o Frisk." Ele: "Está bem." À noite, no doce aconchego do leito conjugal, ele prepara-se para ler mais um quarto de página de um romance de José Saramago quando ela se aproxima, estendendo o braço, os corpos no Verão têm um calor estranho: "Achas que ele vai meter o Postiga de início?" Ele: "Quem?" Ela: "O Scolari. Achas que ele vai pôr o Postiga logo no princípio?" Ele: "É um miúdo." Ela: "Também o Cristiano Ronaldo, vê no que deu." Ele reabre o Saramago e avança pela oitava linha do seu quarto de página quando, de repente, ouve uma voz: "Ele joga bem, mas é um bocadinho magro de mais." Volta-se para ela: "Quem?" Ela: "O Ricardo Carvalho. Mas defende bem, só que não tem os músculos do Couto. Não se compara. O Scolari também foi defesa. Não te esqueças de comprar a cerveja para o jogo de amanhã. É pena que o árbitro não seja o Frisk." Ele: "Está bem." Não chegou a completar o seu quarto de página do romance. Ela, a terminar: "Por que é que o Frisk não pode arbitrar jogos em Portugal?" As feministas nunca imaginaram que o futebol as libertasse.

Ao fim de uns meses de outro hemisfério, peço humildemente que organizem já outro Euro. Isto, assim, está enfadonho, como de costume. Portugal anda com má cara. Desculpem-me pelo facto de me interessar cada vez menos pela política e pelas piruetas do Bloco de Esquerda - mas os telejornais não ajudam.

P.S.: Não vi o dr. Bagão Félix em directo. Mas ouvi e li as críticas da Esquerda. Estou quase a acreditar que o ministro falou bem.

Jornal de Notícias - 16 de Setembro de 2004