outubro 14, 2004

Carácter

É evidente que todos os governos têm direito a um período de "benefício da dúvida". Durante esse "período experimental", a sociedade deve abster-se de fazer guerrilha ao Governo e o Governo, por seu lado, deve expor com clareza ao que vem, tem direito a tropeções e a cometer gaffes - e deve abster-se, também, de mover uma guerrilha contra a sociedade. Enfim, deve ser decidido, mas cauteloso; todas as atenções (da Imprensa, dos adversários políticos e dos cidadãos) estão dirigidas na sua direcção. Nenhum governo pode julgar que tem o tempo a seu favor ou que o "benefício da dúvida" é uma espécie de tapete vermelho para tomar conta de São Bento ou do país.

Estas coisas sabem-se. Sobretudo em tempo de crispação e de ressentimento, cujos níveis mais altos foram atingidos quando o presidente da República nomeou Santana Lopes como primeiro-ministro. Nessa altura, esteve à vista que se tratou de um excelente serviço ao Partido Socialista. Escrevi-o na altura e mantenho. Evitando um confronto eleitoral entre Ferro Rodrigues e Santana Lopes - que este último ganharia -, o presidente abandonou o Governo do PSD à deriva das suas contradições (que estão mais do que à vista e que Durão Barroso - o grande culpado - conhecia bem). Ao PS, pela amostra corrente, resta-lhe esperar. Mais nada. Sócrates tem uma estrelinha (a da sorte, não a do socialismo). Ora, os níveis de crispação foram ultrapassados durante o recente "caso Marcelo" e são o resultado da falta de sensibilidade do Governo.

Ao contrário do que algumas vozes disseram, trata-se de um problema de "liberdade de expressão" e não apenas de um "caso político", a diluir no conjunto de confrontos entre Governo e Oposição. A defesa do "princípio do contraditório", feita pelo ministro dos Assuntos Parlamentares, não tem qualquer sentido. O argumento de que se trata de "mais uma traquinice do Marcelo" é absolutamente irrisório e não desvaloriza o essencial; e o essencial é o seguinte: o ministro pediu para silenciar uma voz incómoda. Ora, vozes incómodas são o que há mais na nossa vida - e temos de conviver com elas. Para esta discussão, pouco importa se Marcelo Rebelo de Sousa quer ou não penalizar o Governo, se "o professor" se lança a fazer oposição interna a Santana Lopes ou se tem direito a 45 minutos de solilóquio.

O que é grave é a ideia de que qualquer crítica (ao decreto da ponte, à ida de Paulo Portas ao carnaval de uma amiga, às gravatas de um director-geral, ou, por displicência, a aspectos essenciais da governação) seja entendida como "destilar ódio ao PSD". Isso é que eu acho inaceitável. Tal como acho inaceitável que, a cada crítica e a cada despacho de uma agência de notícias, se responda com conferências de Imprensa e comunicados oficiais. Isso é coisa de quem depende absolutamente das primeiras páginas e não se defende onde essas coisas devem ser defendidas: no Parlamento, no Governo, nos ministérios, provavelmente na acção governativa.

Tratar toda a "opinião desfavorável" como uma ameaça iminente é uma coisa desprezível que retira dignidade à ideia de governar; como se não fosse possível governar sem as primeiras páginas e sem o beneplácito dos comentadores. Esta dependência orgânica é que é desprezível - não me interessa que Marcelo se tivesse demitido para vestir a pele de vítima. Isso é assunto dele, dos que acham que a política se reduz a "factos políticos" e ao jogo do Monopólio. O meu assunto é o da liberdade, porque sou cidadão. E assunto meu é, também, a forma como as autoridades reagem às críticas. Podem não revelar outra coisa - mas revelam um carácter.

P.S.: Este artigo retoma um texto que escrevi para o blog http://aviz.blogspot.com

Jornal de Notícias - 14 de Outubro de 2004