janeiro 06, 2005

Histórias de traições

Santana Lopes queria Cavaco Silva para ilustrar um cartaz. Cavaco recusou. Recusando aparecer no cartaz, recusou ao novo líder não só a sua bênção mas também o direito a usar a sua imagem para um fim inegável e legítimo ganhar votos. Houve uma imensa gritaria.

Para uns, Cavaco não teria o direito de se recusar a aparecer nos cartazes, ao lado de outros primeiros-ministros do PSD. Para outros, isto é o sinal de uma hecatombe - Cavaco, que representaria o PSD das maiorias absolutas, o PSD do crescimento económico, da ordem nas ruas e da paz doméstica, recusa dar o seu aval a Santana. Ou seja, Santana tem os discursos, sim, invoca Sá Carneiro frequentemente, o PPD-PSD, a ideia de confronto com a Esquerda, os congressos que se estendiam pela noite fora com discursos emotivos e muito pessoais, a ideia de invencibilidade de um líder jovem e destinado a desafiar os sacerdotes e os senadores, a sua aliança com a "beautiful people" - mas isso não bastaria, muito pelo contrário, para ter Cavaco do seu lado.

Cavaco, dizem os apoiantes de Santana, traiu. Eu admito que isto seja assim e que não haja nada a fazer; se Cavaco não gosta de Santana Lopes, tem o direito de não aparecer nos cartazes; a sua imagem não é propriedade do partido dirigido por Santana Lopes.Por outro lado, ao não aparecer nos cartazes, Cavaco está a dar trunfos ao adversário, seja ele qual for. "Vejam, nem Cavaco quer nada com ele." Os porta-vozes anónimos (não li grandes declarações assinadas por baixo) garantem aos jornais que Cavaco se passou para o outro lado, que colocou interesses pessoais à frente dos interesses colectivos, nacionais - e que traiu o partido.

O país está mauzito, sim. Anda pela pátria uma ventania de insanidade mais do que de mediocridade. Os sociólogos dizem que as elites portuguesas, não raramente, andam descontentes com o poder e com o povo em simultâneo. O povo desconfia do poder e das elites.

O poder detesta as elites e não confia no povo. É normal, a história confirma-o. Mas, de resto, murmura-se muito, as intrigas sucedem-se, cada "mensagem ao país" arrasta consigo mais sinais e insinuações do que frases com sujeito e complemento directo. Espera-se demasiado. Vi muitas vezes, recentemente, usada a palavra "traição". Com isso, volto atrás muitos anos - o uso da palavra "traição" faz parte de um código repelente e abjecto que se encarrega de punir as ideias e a discussão e lhes prefere o silêncio e os pequenos empregos, as nomeações e as recompensas surdas. Em política, a palavra "traição" faz parte de uma gramática associada ao medo.

O filósofo José Gil publicou recentemente um livro ("Portugal, hoje. O medo de existir", edição Relógiod'Água) que devia ser lido. A certa altura, cita Hannah Arendt quando ela fala de "um deserto de medo e de suspeitas, sem leis nem barreiras". Este clima está criado quando se elege a "traição" como uma presença no código do discurso político. Ex-ministros e ex-futuros deputados falam de "traição". Os aliados de Santana Lopes mencionam a "traição" de Pacheco Pereira, de Cavaco ou de Marcelo.

Neste ambiente respira-se mal. Desconfia-se mais, trabalha-se menos, pensa-se pouco, há menos pudor. Os medíocres têm mais oportunidades e, realmente, ninguém sai bem visto.

As histórias de traições são um mau prenúncio. Quem não leu Tucídides, que o faça. Pode não ser para já, claro - mas há mais vida para além de Fevereiro.

Jornal de Notícias, 6 de Janeiro de 2005