junho 23, 2005

Arrastados pelo vento

O "arrastão" de Carcavelos surpreendeu muita gente e eu acho que há razões para isso. Não vale a pena sermos cínicos ao ponto de dizer que "estava escrito" - isso tanto serve para ser usado pela Extrema-Direita racista, que culpa "os pretos e os estrangeiros" pelos desacatos na velha pátria (como se fôssemos todos branquinhos e enjoados), como pela Esquerda fatal que aprecia o retrato de vitimização "dos marginalizados e dos excluídos" (como se em Portugal houvesse apartheid). Esse caldeirão é redutor e nele cabe tudo o que não vale a pena discutir com seriedade. Na verdade, não estava escrito. Poderia acontecer, mas a dimensão do estrago tomou proporções alarmantes, com as televisões a anunciar mais "arrastões" onde se tratava apenas de assaltos e a tremer de comoção com um roubo por esticão, cometido por um "cidadão de raça negra".

Há uns anos, era Fernando Gomes ministro da Administração Interna, e uma actriz foi assaltada. A actriz murmurou ainda que Lisboa era pior do que o Rio de Janeiro. Só umas semanas depois, toda a gente se deu conta do exagero e do ridículo. Imediatamente, explodiram comentários, na Imprensa e na Rádio, sobre o mal que os pretos estavam a fazer à pátria, ainda que o caso não tivesse registado as proporções trágicas do "Meia Culpa", em Amarante (em que só brancos estavam envolvidos, portanto). A paranóia foi gritante. As televisões adoram.

Esta questão do racismo volta, de vez em quando à tona. Uns energúmenos organizaram uma manifestação "patriótica" para pedir que os pretos sejam expulsos e a pátria salva da invasão dos estrangeiros. A praia de Carcavelos, entretanto, voltou à calma com menos gente, que prefere outras paragens. O problema de Carcavelos, aliás, não é de integração racial nem de segregação racial é de policiamento. Pretos ou brancos, adolescentes "excluídos" ou imberbes "integrados", os criminosos devem ser tratados como criminosos, pela Polícia. Não há volta a dar-lhe. O resto é cair na vitimização rota, muito sociológica e sacana, ou no racismo de pretos e de brancos, demasiado imbecil.

Há aqui uma questão central a da nacionalidade. Eu quero que o meu país seja feito de pretos e de brancos, de católicos e de muçulmanos, de ucranianos e de beirões. É uma ideia pessoal e admito que seja lamentável - mas não vejo outra solução. Estamos todos cá. Já vai longe o tempo em que tivemos um treinador da Selecção Nacional de Futebol que defendia a existência de "portugueses legítimos" e de "portugueses de segunda". Para mim, Deco é como se tivesse nascido no Minho e um miúdo nascido de pais bielorrussos que trabalham em Lisboa é como se fosse ribatejano.

O presidente Sampaio foi à Cova da Moura. Devia ir mais vezes. E o presidente da Câmara da Amadora também. Se aquelas pessoas são portuguesas, são portuguesas - devem obedecer às nossas leis, ser tratados como cidadãos, presos se cometem crimes, hospitalizados se estão doentes, perseguidos se praticam excisão feminina, e os seus filhos educados nas escolas públicas. Essa é a lei que eu defendo. Se não são portugueses, devem comportar-se como estrangeiros e respeitar o país onde vivem, até que decidam, de acordo com uma lei justa e generosa, optar pela nossa nacionalidade. E aos estrangeiros devemos também um pouco de atenção. Nós fomos estrangeiros em qualquer outro lugar da nossa vida.

Isto não evita os "arrastões", mas ajudará bastante. O pior racismo é o da iniquidade com que se permite a miséria. A pretos ou a brancos.

Jornal de Notícias - 23 de Junho 2005