julho 07, 2005

Coisas portuguesas

1. O primeiro-ministro respondeu a todas as perguntas na entrevista que concedeu à SIC. Prometeu não subir mais os impostos e declarou que acreditava no Estado social. Não fez mais do que a sua obrigação. O primeiro-ministro devia esse esclarecimento aos portugueses, ainda que eles saibam que os impostos vão subir mais e que o "Estado social" tem os dias contados.

Vão chegar mais dificuldades. As obrigações para o controlo do défice não deixam muitas hipóteses a qualquer governo decente. Os investimentos públicos anunciados e as parcerias público-privadas contentarão os empresários que vivem na órbita dos grandes projectos e dos "desígnios nacionais" que implicam construção e obras públicas ou grandes investimentos tecnológicos - mas os cidadãos sabem que isso melhorará a sua vida apenas a longo prazo. Fazem contas, como toda a gente e sabem que o curto prazo é o dia seguinte. Sabem que foram cometidos grandes erros, que existe mesmo um "monstro" de que todos querem livrar-se. Mas livrar-se do "monstro" implica custos sociais gravíssimos e que são incompatíveis com o "Estado social" tradicional. As garantias de emprego e de bem-estar estão hipotecadas. A memória está a regressar. E não traz grandes coisas. Todos percebem isso, intimamente, e essa é uma das razões por que as "jornadas de luta" não mobilizam quase ninguém - no dia seguinte, a vida continua, o défice continua, o "monstro" está lá, ninguém arrisca mudar o rumo.

Todos sabem que era necessária uma limpeza. Arrumar as contas tornou-se uma obrigação moral. O presidente da República, que durante os governos de Direita achava que havia vida para lá do défice, converteu-se à linguagem dos números e das necessidades mais cruas. Os socialistas, que murmuravam contra "o défice" e a sua obsessão, arranjaram um ministro das Finanças sitiado, que carregará aos ombros a despesa da impopularidade. Reduzir despesas, cortar privilégios (alguns absolutamente normais), emagrecer orçamentos, tornou-se a única linguagem permitida. Estamos reduzidos a essas parcelas, o que é mau para a política, embora seja razoável para as contas públicas.

No próximo dia 12, o blog Blasfémias organiza no Porto (no Café Guarany) um debate com este sugestivo título "Por que é que a Direita quando chega ao poder não é liberal?" Diante da linguagem deste Governo, também nos podemos interrogar sobre as razões que levam Sócrates a ter de ser mais liberal do que alguma vez pensou o seu próprio partido. Responder a isso era uma lição importante.

2. O dr. Jardim, num arroubo de grande coragem patriótica, diz que não quer chineses nem indianos na Madeira. Faz mal. Os chineses, os indianos, os pretos e os amarelos, os emigrantes brasileiros e ucranianos, seja quem for, paquistaneses e russos, podem mostrar como se encaram dificuldades e se organizam diante delas. Fazem concorrência a maus comerciantes e a funcionários sem brio. O dr. Jardim acha que a Madeira e Portugal precisam de empurrar "essa gente" para lá das fronteiras. Faz mal.

Mas o dr. Jardim não é um exemplo nessas matérias. Ele não pensa. Não porque não queira, mas porque não pode. É um bloqueio como qualquer outro, humaníssimo. Tenhamos misericórdia e empurremo-lo para a reforma.

3. Três dias antes da eleição histórica de Lula da Silva como presidente do Brasil, escrevi, neste mesmo jornal, um artigo que foi glosado e atacado em bastantes lugares. A ideia era "oxalá me engane". Infelizmente, não me enganei muito o partido de Lula está envolvido em tudo quanto é corrupção no Brasil. A realidade é uma coisa muito triste.

Jornal de Notícias, 7 de Julho 2005