julho 28, 2005

Pedagogia de quê?

O anúncio da candidatura de Soares à presidência, preparado e calculado há bastante tempo, veio interromper a modorra da política ou reconduzir os caminhos da política para lá dos limites do défice. Os portugueses terão, agora, mais com que se preocupar. Vai ser uma festa. Uma fonte próxima de Soares declarou ao jornal "A Capital" que espera uma campanha alegre e com ideias. Em simultâneo. Vai ser uma festa. Outra fonte próxima mencionou também a necessidade de mais ideias. Portugal vai, finalmente, regurgitar de ideias graças às presidenciais. Vai ser mais do que uma festa, porque se trata, ainda de acordo com essa fonte, um "acto cívico e pedagógico".

Eu compreendo que se trata de um acto cívico dos 35 anos em diante, um dos direitos dos cidadãos é o de poder candidatar-se à presidência da República. Mas não entendo a natureza pedagógica da candidatura presidencial. Admito que o dr. Mário Soares tenha coisas para dizer (o que faz, aliás, num programa de televisão) e que tenha, até, ideias para discutir; o regime deve-lhe bastante e essa dívida tem sido paga em reconhecimento, respeito, silêncio e também veneração - infelizmente, há quem ache que o respeito pelas suas ideias se deve confundir com o respeito pela sua idade, o que é lamentável e o deve desgostar bastante. Não encontro nesta candidatura "virtudes pedagógicas" maiores do que em qualquer outra. A sabedoria que se retira da velhice é boa para relermos Séneca, mas não deve aprisionar-nos quando se trata de política. O pior que se pode fazer a Mário Soares e à sua candidatura é manifestar-lhe o respeitinho moral que fará dele um bonzo da República ou uma velharia aceitável e comovente. Parte da Esquerda vê nessa candidatura a salvação; provavelmente, até Sócrates a acolhe com alívio, ele que foi publicamente humilhado por Soares (que lhe chamou a parte "menos feliz da herança guterrista, pela falta de firmeza nas ideias"): porque esta candidatura "cívica e pedagógica" é entendida como "supranacional" ou apenas "superiormente orientada para o mundo das ideias" (já ouvi isto e ninguém se riu).

Evidentemente que é um erro - e grave - dizer que a idade é um argumento sério contra Soares. No país que tem cada vez mais a mania imbecil da juventude eterna, a velhice merece ser valorizada, mas não idolatrada ou desculpada. E a candidatura de Soares servir-se-á certamente da idade como um valor essencial do seu marketing vejam como o velho combatente regressa; vejam como ele se submete ao confronto; vejam como ele tem, aos 80 anos, coragem de subir ao ringue e de assumir este "acto pedagógico"; vejam como a sua experiência é um valor. E virão então as imagens nos tempos de antena da candidatura: o velho resistente ao fascismo; o republicanismo a reboque; o regresso do exílio; os tempos da luta contra os militares e os comunistas; a primeira eleição presidencial; as suas presidências abertas contra Cavaco, "o gajo"; a sua amizade com "intelectuais e artistas"; a sua participação nas manifestações contra a guerra; e essa biografia avassaladora, cheia de momentos sublimes, de vitórias e de discursos, será servida como um antídoto contra a política e, justamente, contra as ideias. As dele, talvez; mas, certamente, as dos outros. O que estão a fazer a Soares é transformá-lo no semi-deus da democracia. O que é, manifestamente, um perigo para todos. Talvez uma derrota eleitoral o faça descer à terra e ser humano. Nessa altura discutiremos ideias.

P.S. Votei uma vez em Mário Soares nas eleições para a presidência da República porque não queria a vitória de um candidato antiliberal (Freitas do Amaral). Era bom que as pessoas se recordassem desses tempos.

Jornal de Notícias, 28 de Julho 2005