julho 14, 2005

Portugal, apesar de tudo

De vez em quando, o país inteiro (três quartos da população, um quarto do território) dá-se conta de que existe um país incompleto (um quarto da população, três quartos do território). Há vantagens e desvantagens nisso. Uma das vantagens é que se promete sempre completar um pouco mais o "país incompleto" - o país vagamente feito de interior, de estradas menos boas, de escolas sem aquecimento, de aldeias abandonadas e de outras coisas aparentemente incompreensíveis para quem acha ou sabe que Lisboa é, de facto, o centro do mundo, a razão de ser da nossa cultura e do crescimento da nossa economia, um dos motores essenciais dessa economia moderna, financeira, especulativa e democrática, como há uns anos o Porto cumpria algum desse desígnio nacional. O "país incompleto" pesa pouco na balança dos créditos e constitui uma ameaça para o orçamento, cada vez mais apertado quando se trata de financiar "regiões improdutivas". Aconselho os leitores a um passeio por esse interior, de Bragança a Mértola, de Elvas a Sagres.

Ora, esse "país incompleto" (um quarto da população, três quartos do território) é altamente deficitário. Para uma economia estritamente liberal, seria conveniente arrendar esse território e ceder à exploração de uma entidade privada essa parcela populacional. O Estado lucraria imenso e livrar-se-ia de uma grande parte da taxa de analfabetismo, de agricultores humildes, de funcionários da administração pública, de guarda-rios, de professores deslocados e de médicos que ambicionam viver em Lisboa, Porto ou Coimbra. Três quartos da população (ainda que confinados a apenas um quarto do território) talvez não rejubilassem, porque grande parte deles conserva a sua condição de emigrantes na periferia das três maiores cidades, mas os responsáveis pela administração do Estado sorririam à ideia. De vez em quando há problemas em Miranda do Douro, em Portalegre, em Mogadouro, em Almeida, em Pias, na Covilhã ou na ilha do Corvo. Lamentáveis ocorrências apenas explicadas pela incúria e inoportunidade desse "país incompleto".

Sejamos realistas metade do país não rende. Quer dizer: não é prestável do luminoso ponto de vista da rendibilidade económica. De resto, só défice. Esse "país incompleto" é bom apenas por poucos motivos: oferece uma boa área para que as estradas que vêm de Espanha e do resto da Europa atinjam o litoral sem problemas de maior (tirando o IP5 e o IP3), pontuados aqui e ali de bombas de gasolina, de restaurantes e de lojas de artesanato; e é "a terra" de muita gente que vai lá às romarias ou ao jantar de Natal. De resto, são hortas, pastagens e muita pedra. Os agricultores despejam batata na rua porque Espanha a vende mais barata.

Não está posta de parte a hipótese de arrendar essa parcela do território. Ficariam com a bandeira portuguesa, sim. E até se mandariam professores. Mas, que diabo, seriam administrados por uma empresa privada que garantiria que o orçamento de Estado não geraria défices assombrosos com essa terra de ninguém que era bom entregar ao turismo rural e à "literatura fantástica" que se encarregaria de divulgar as suas potencialidades para os fins devidos.

Vêm aí as eleições autárquicas. O país rejubilará com o "mapa laranja" ou o "mapa rosa". Autarcas dinossauros ou estreantes aparecerão nas pantalhas. Os comentadores terão em conta a expressiva votação em Almeida ou em Vimioso, como no Alandroal e em Aviz? Não. Eles sabem que se trata de um quarto da população, três quartos do território. Esse país terá cartazes, outdoors, visitas do Tribunal de Contas. Tem estradas e IP, "acessibilidades" e Pólis, mas duvido muito que perceba as incidências do défice. Está em défice há muito tempo. Devíamos pensar nele por um instante.

Jornal de Notícias, 14 de Julho 2005