agosto 01, 2005

Portugal no sul do mundo

Buenos Aires demora para adormecer mesmo se já se trata da luz do dia. É verdade que às cinco da manhã Buenos Aires respira ainda o ar da noite que se vai recolhendo em taxis e caminhadas ao longo da Recoleta. Eu recomendo sempre que se comece a visita a Buenos Aires pela Recoleta ao cair da tarde, e só depois, na manha seguinte, nos passeemos pelos seus cafés e mercados; aqueles jardins e passeios com esplanadas devolvem-nos um pouco da Europa e muito de civilização.

Os antropólogos acham que é abusivo mencionar a Europa a propósito de Buenos Aires, mas tanto os porteños como os que têm saudades de Buenos Aires sabem que a Europa e a capital argentina andam de mãos dadas. E que me sinto mais europeu ali do que nas pontes destruídas de Sarajevo.

Mas os domingos de manhã com sol mostram o gigantesco pulmão da cidade, dividido entre os jardins e o rio da Praia. A viagem entre o centro e o porto é rápida, serve para uma despedida ligeira, um aceno breve - voltar-se-á sempre a Buenos Aires, pelo menos em sonhos, para visitar os cafés, os relvados, as ruas, as salas de baile, as livrarias (excelentes, com livreiros dedicados e atentos), os restaurantes, a roupa comprada nos mercados, e a memória de cada bairro.

Esqueci-me de mencionar Jorge Luís Borges, mas o leitor compreende; algum segredo teremos de manter. Dali, do porto, apanha-se o barco para a outra margem do rio da Prata.
Há cerca de quatrocentos anos, a 28 de Janeiro de 1680, o governador português do Brasil, Manuel Lobo, se soubesse da noticia, tinha ficado contente: o capitão António Velho, em cinco navios que tinham deixado o Rio de Janeiro a 8 de Dezembro, tinha chegado a terra firme. Não a uma terra firme qualquer, mas a terra firme diante de Buenos Aires, para fundar uma praça portuguesa na margem oriental do rio da Prata, conforme tinha determinado D. Pedro II. Chamou-se Colónia do Santíssimo Sa­cramento. O conflito geopolítico entre Portugal e Espanha agudizar-se-ia a um ritmo quase regular e terminaria apenas com o abandono definitivo da praça. Em 1777 os espanhóis desferiram o ataque definitivo sobre a Colónia, depois de cem anos de combates, e em 1801 urn tratado assinado em Badajoz legalizava a ocupação: Portugal ficava com os chamados Territórios das Missões (hoje no Rio Grande do Sul) e a Espanha retomava a Colónia del Sacramento.

Mas agora, a medida que o barco avança, largando a Argentina e juntando-se às aguas do Uruguai, a Colónia del Sacramento pode revelar, ao longe, o traço português. As primeiras ruas da cidade são a maior surpresa: museu português, a fortaleza, as casas de desenho colonial com telhado de quatro águas, as lajes das ruas, a forma das praças, a memória de uma igreja (a Matriz do Santíssimo Sa­cramento), a Calle de los Suspiros, o convento de São Francisco Xavier, a sombra das arvores também, e o pudim "de Lisboa" que se come num dos restaurantes da cidade velha. Há coisas que evocam outras, mas a Colónia del Sacra­mento evoca o que quisermos. Sitiada, isolada diante de Buenos Aires, o que a Colónia evoca destina-se apenas a quem procura as evocações, que é uma das condições do viajante: o resto é a noite, a noite dos restaurantes e dos bares, iguais em quase todo o mundo; e os dias, claro, os dias de praia no literal dos rios.

Mas a frescura absoluta e melancólica das manhãs que passei na Colónia, com as neblinas madrugadoras recebendo os ferries e o jetfoil que fazem ligação a Buenos Aires, essa é, indiscutivelmente, o melhor da cidade. Vai-se ao porto buscar o Clarín, o jornal argentino que é também um dos três melhores da América Latina, passeia-se pela alameda que vai dar a Pousada do Governador para ver quem está no barbeiro, quem se senta nos cafés, quem chegou de Montevideu. A península (que leva o nome de San Gabriel) parece, mal se sai dos limites da cidade velha, uma fortificação imensa.

Se se é português, mesmo quando nos estamos nas tintas para o patriotismo e para a história das colónias, não se consegue resistir a uma pequena comoção, que se volta a sentir depois, mais à norte, no território das Missões, onde se cruzam os ventos da Argentina, as planícies do Uruguai e a profundidade absoluta, a sensação de completo aban­dono que fornecem aqueles antigos caminhos secretos do Paraguai. Só que Colónia resiste, resiste ao tempo, resiste a vida que corrói a própria pedra em que ela foi inscrita. Portugal foi até ali, diante de Buenos Aires.

in Outro hemisfério – Revista Volta ao mundo – Agosto de 2005