outubro 29, 2005

Geografia e felicidade

Agora, que o Inverno se aproxima, eu penso no frio. O frio é um valor civilizacional e fundador. Sem ele, o miserável frio que está a preparar-se para nos atormentar, não seríamos como somos, não teríamos chegado até aqui. Muitas vezes penso que isso não é grande vantagem, mas são momentos de perturbação. Às vezes esquecemos o valor da geografia, essa ciência contrária a todos os optimismos, fundada no inevitável. Não se pode fazer nada contra a geografia - imaginemos, por exemplo, Jacarta às onze horas da manhã de um dia de Outubro: a temperatura ronda os 32 graus, a humidade do ar atinge os 95 por cento, mesmo se uma ligeira brisa se aproximar através das florestas. Florestas tropicais, portanto. E imaginemos, por exemplo, Duesseldorf. Às onze horas da manhã de um dia de Outubro deste ano, a temperatura chegou aos 16 graus e a humidade do ar não ultrapassou os 40 por cento. Isso é um factor determinante no desenvolvimento dos países. Enquanto um indonésio está condenado àquele clima e, portanto, Ihe é mais difícil trabalhar ordeira, disciplinada e até proveitosamente, um alemão de Duesseldorf não terá tanta dificuldade para enfrentar o seu trabalho. Se eu vivesse na Martinica seria uma tortura. Como já vivi em Sal­vador, na Bahia, sei do que falo: costumava levantar-me às cinco da manhã para trabalhar até às onze, iniciando um intervalo que ia até às quatro da tarde, quando o calor se tomava mais suportável. Pelo meio, nada.

A geografia ensina-nos que climas frios ou temperados favorecem o traba­lho disciplinado; climas quentes e tropicais favorecem a preguiça, a dolência e a contemplação. Quer dizer: a praia, a cerveja fresca e a libido. Nada de mau -todos gostamos disso. Mas sabemos que nem sempre pode ser assim. A menos que nos habituemos desde pequenos.

Por isso penso no frio e nas minhas cidades ideais para enfrentá-lo. Reykja­vík, a capital islandesa, é uma delas. Quando visitei a Islândia pela primeira vez, em 1983, não havia televisão às quartas-feiras e a venda de álcool estava limitada aos fins-de-semana. As pessoas davam passeios em volta da cidade, recolhiam a casa para serões prolongados pelo Inverno polar, percorriam de bicicleta os trilhos desenhados ao longo das ruas, viajavam de autocarro em redor da ilha. No centro da cidade descobri, em tempos, um café onde se podia passar uma parte da manhã lendo os jornais do mundo inteiro (pendurados na parede, um serviço gratuito para os frequentadores), à frente de um bule de café e de um cinzeiro. A biblioteca central de Reykjavík, para uma malha urbana que contava cerca de 80 mil habitantes, cedia cerca de 30 mil livros por empréstimo, mensalmente. Voltei dez anos depois e muito tinha mudado: já havia televisão todos os dias e as restrições ao álcool tinham acabado, havia grandes discotecas e bares (um deles, curiosamente, dirigido por Portugueses) e o fenómeno Bjork tinha alterado o próprio reconhecimento do país em todo o mundo. Não deixara de ser uma das minhas cidades, e até es­tava mais próxima do “modelo latino”. De alguma maneira, cansados de civilização, domínio dinamarquês, disciplina Viking, noites polares, agasalhos e restrições morais, os islandeses alargaram a malha dos deveres e dos prazeres de modo mais conveniente. A criminalidade tinha aumentado ligeira e proporcionalmente. O custo de vida mantinha-se perigosamente alto, tal como os índices de educação, cultura, leitura e frequência da bela biblioteca central de Reyk­javík, desenhada pelo finlandês Alvar Aalto. Ao fim de uma semana descobri que eles apenas tinham adaptado o princípio da realidade ao princípio do prazer, sendo ligeiramente mais permissivos e menos luteranos. Quando penso no frio civilizador penso na Islândia e nos países do Norte (Noruega e Suécia, especialmente) e penso no design nórdico, na elegância das suas florestas e das suas casas, até na frescura das suas cervejas e no silêncio das suas noites.

Mas, mal vem a Primavera, mal desponta aquele ardor na pele, sujeita ao primeiro sol tépido empurrado pelas aragens do Mediterrâneo, sou tomado por uma vontade desproporcionada e absurda de me esquecer da civilização e de esquecer tudo o que o bom senso ensina. No fundo, reconheço que tenho saudades da minha barbárie do Sul. Não fui feito para a civilização acima de determinado grau.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Novembro 2005