outubro 13, 2005

Preocupações e absurdos

As autárquicas são um assunto encerrado. Não houve grandes festejos nem, suponho, enormes depressões - mas apenas um ténue "movimento pendular" que não se cansou de tirar ilações dos resultados de domingo, aqui e ali, sempre mencionando a diferença entre "eleições locais" e "resultados nacionais". Compreendo a diferença, mas não entendo a preocupação.

Curiosamente, fazendo o balanço, quem primeiro buscou nas "políticas nacionais" do Governo de Sócrates uma justificação para a derrota eleitoral do PS, foi, justamente, um dirigente socialista de Lisboa. É fácil sucumbir a essa tentação para os socialistas, as medidas do Governo prejudicaram o resultado do partido; para a Oposição, o castigo dado pelos eleitores, votando no PSD e na CDU, tem a ver, necessariamente, com as medidas do Governo.

As coisas não são necessariamente assim. Como se não bastasse relembrar que Cavaco foi "derrotado nas autárquicas", pouco antes de mais uma maioria absoluta, ainda é preciso lembrar que Sócrates tem sobre Guterres uma vantagem inegável - a maioria absoluta. Que se saiba, só os partidos minoritários e o dr. Soares são contra as maiorias absolutas, o que não tem relevância absolutamente nenhuma.

Ora, a maioria absoluta de Sócrates é um dado essencial para compreender este período que vai das autárquicas às presidenciais. Obtida em confronto com um adversário enfraquecido e isolado no seu próprio partido, essa maioria não tem dimensão política ou ideológica; é uma "maioria sociológica", como o provam os resultados eleitorais de Outubro, em comparação com os de Fevereiro. O eleitorado português, além de ser pouco previsível, é esperto. E, pior revela alguma inteligência. Em Fevereiro, votou num Sócrates que prometia não incomodar muito e inverter a marcha de disparates em que se transformara o último ano do PSD no Governo. Mas não deu a Sócrates nem ao PS a alegria de uma "reprise"; pelo contrário, olhou bem para os candidatos, viu o que estava em jogo e votou em conformidade.

Depois de anos de fugas (Guterres e Durão Barroso) e de intranquilidade (Santana), toda a gente percebeu que, mais défice ou menos défice, mais sindicatos na rua ou mais inflamação nos discursos, a pátria precisa de sossego e os portugueses de retomar a vidinha. Sim, eu sei que este retrato é conservador. Mas não convém iludi-lo. As presidenciais vão confirmá-lo.

2. Fico surpreendido com a forma cordata, distraída e envergonhada como se tem vindo a receber a absurda teoria presidencial acerca da "inversão do ónus da prova" em matéria fiscal, sem avaliar os riscos que daí decorrem. A inversão do ónus da prova, seja qual for a circunstância, é um ataque aos direitos e à dignidade dos cidadãos - pelo Estado ou diante do Estado. E, conhecendo a larga tradição da máquina de suspeitas que o Estado português é capaz de engendrar, além da fragilidade política da Administração Fiscal, não se espera nada de bom.

Até porque se há inversão do ónus da prova em matéria supostamente fiscal, "porque quem não deve não teme", o que impede o Estado de instalar videovigilância onde lhe apetecer, de utilizar as câmaras da Brisa para controlar a velocidade e a identidade dos condutores, de ameaçar os cidadãos com castigos exemplares, caso não provem que não foram eles que atentaram contra a moral, de identificar os cidadãos que leram livros de Guy Debord ou de Céline, de verificar quem fumou marijuana ou Montecristo, de identificar sodomitas e versilibristas, de manter ficheiros informáticos de quem sofre de asma ou de dependência de álcool, etc., etc.? Nada nem ninguém. Sabem porquê? Porque "quem não deve não teme".

Começa-se por algum lado. Dificilmente se acaba o desfile de coisas absurdas que acontecem depois.

Jornal de Notícias - 13 de Outubro 2005