novembro 10, 2005

Paris em Lisboa

Pela televisão, as coisas não têm cheiro. O som é filtrado, as imagens escolhidas, as palavras dos repórteres às vezes absurdas e inadequadas (cheias de banalidades sobre a "revolta dos excluídos" ou "o perfume da revolta"). Há aqueles retratos, naturalmente. Instantâneos repetidos chamas, bombeiros, corridas, ferros retorcidos, carros abandonados, vidros quebrados, lágrimas. E isso está lá, nas imagens da televisão.

Na verdade, essas imagens estavam lá antes disso. A França do "modelo social" importou imigrantes desde sempre. Importou imigrantes espanhóis, portugueses, magrebinos. Não porque isso fosse fundamental para o seu "modelo social", mas porque a imigração era indispensável para manter, nas classes médias, o seu modo de vida limpo e organizado. Esse modo de vida e esse modelo social integrou lentamente ou não integrou de todo a miséria dos "bidonvilles", a sordidez das cidades periféricas onde o Estado não chegava mas que eram boas e muito aceitáveis para imigrantes de primeira geração, habituados a más condições de vida nos seus países de origem (como Portugal). Os "políticos esclarecidos" falavam da França como país de acolhimento, mas substancial parte dos franceses achava apenas que os imigrantes eram úteis, desde que não beliscassem esse modo de vida superior e civilizado. O que então foi nascendo à volta das cidades não foi visto durante anos senão em momentos de crise das ruas territórios onde a República não entrava. A República: a lei, as obrigações para com o Estado, os deveres de assistência do Estado. Em vez disso, desenvolveu-se a má consciência do "estado social" francês: distribuição generosa de subsídios, dinheiro, apartamentos de má qualidade. Tomem dinheiro, mas não apareçam. Desde que o "modo de vida limpo e organizado" dos franceses não fosse beliscado. E, geralmente, fundos e meios administrados por uma rede de ONG financiadas pelo próprio Estado. Daí que uma das recentes medidas do primeiro-ministro Villepin, ao mesmo tempo que autorizava os estados de excepção em algumas cidades, fosse a distribuição de fundos. Grotesco remédio.

Não passou pela cabeça dos que se excitam com "o perfume da revolta" que a maior parte das vítimas dessa violência que destrói escolas e autocarros, lojas e edifícios públicos, sejam precisamente imigrantes e cidadãos que vivem na margem desse modo de vida francês, limpo e organizado.

Não sei se estão a ver o retrato, mas pode simplificar-se territórios onde a República não entra, onde a lei não entra. Sabendo-se que a pior exclusão é a que permite a miséria - a nacionais ou a estrangeiros -, convinha relembrar que nos limites de Lisboa há territórios que em breve serão assim. E que um país que não respeita os estrangeiros e os imigrantes não pode pedir-lhes que o respeitem. É o dilema da República. E das fronteiras actuais.

2. O presidente Jorge Sampaio esteve em Belmonte, no museu judaico. E disse que temos de "defender aquilo que é a capacidade de integração, de conviver com o outro, de termos as minorias que se possam exprimir da forma que queiram." Há certamente um lapso do presidente, atribuível à emoção e à generosidade as minorias, ou mesmo as maiorias, não podem exprimir-se "da forma que queiram". É o dilema da República: se uma comunidade decidir instituir a excisão genital feminina, o sacrifício ritual de animais, a violência doméstica, a escravatura, o ataque indiscriminado contra o Estado e o país de acolhimento, o desrespeito pela lei geral que deve reger todos os cidadãos - independentemente da sua religião ou origem -, como deve o Estado reagir?

Jornal de Notícias - 10 Novembro 2005