dezembro 15, 2005

O lado humano

Os comentadores queixam-se bastante que os debates são mornos e entediantes, cheios de fórmulas e de frases feitas. Têm uma certa razão, se pensarmos que metade deles assistiu a debates cheios de agressividade ou de polémica, e que a outra metade ou ouviu falar desses confrontos televisivos ou os viu na RTP Memória. Outros tempos. Nessa altura não era preciso forçar o espectáculo na televisão; acontecia naturalmente. Tal como hoje, as frases eram feitas e os parágrafos eram estudados com alguma antecedência - mas o tom aguerrido era obra do tempo, resultava com aquela naturalidade com que o telespectador se identificava e que passava tanto pelos "Donos da Bola" como pelo "Jogo Falado".

Depois, os líderes políticos passaram a ser ainda mais calculistas, a usar teleponto, a cuidar de cada frase, a preparar longamente os improvisos.

Uma legião de "analistas de texto", disposta a sacrificar uma boa ideia em nome de uma má declaração que passasse para a primeira página dos jornais, passou a vigiar meticulosamente adjectivos e advérbios. Os debates continuaram, mas os candidatos aprenderam cautelas, cuidados e frases feitas. Um deslize podia ser a morte do artista.

Mas os analistas e comentadores querem assunto e querem polémica. Querem "o lado humano" dos candidatos, como se alguma vez isso fosse possível nesta altura. Têm saudades da Marinha Grande e do sopapo que transformou a campanha de Soares na sua primeira eleição presidencial. Alguns ficam chocados com a naturalidade com que Jerónimo de Sousa veste os seus fatos. Queriam que Louçã regressasse aos seus tempos de líder trotsquista e lhes desse matéria. Preferiam que Cavaco replicasse a cada amuo ou picardia de Soares. Sonham com um soneto recitado por Alegre em pleno debate. Todos queriam que "a política" regressasse por instantes, nem que fosse por instantes, ao espectáculo que a vida se encarregou de eliminar. Que houvesse comunistas e trotsquistas de antigamente, dispostos a colocar bombas e a pedir a prisão dos bispos e dos capitalistas, e que houvesse direitistas desejosos de fechar as fronteiras e de privatizar o Parlamento.

Ora, a eleição presidencial tem limites muito precisos. Salvo se se revelar um escândalo (um candidato abandona o lar para viver em pecado com uma bailarina ucraniana ou com uma sambista carioca), os debates serão confrontos de cautelas. Ninguém espera outra coisa.

Na verdade, o que disseram Alegre e Louçã, no debate entre eles? Que há questões graves a Constituição europeia, a privatização do sector energético, a "globalização neoliberal"? E o que decidiram eles? Que iam demitir Jardim e propor a saída de Souto Moura. E podem? Não.

Mais de 60% dos eleitores dizem que os debates televisivos, em princípio, não influenciarão a sua intenção de voto. São sábios, os eleitores. Reconhecem que aquilo é espectáculo.

Certamente que isso é uma desilusão para os "analistas de texto" e para os comentadores. Para estes, ao contrário da generalidade dos eleitores, a política é esse pequeno confronto entre cavalheiros da televisão e entre frases curtas que podem resultar de lapsos ou de premeditação. Deliram com um deslize. Uma pequena interjeição. Um erro fatal. Mas os eleitores sabem que um debate é apenas uma encenação entre pessoas bem-educadas, e que a política é outra coisa. E que farão as suas escolhas conforme for melhor para as suas vidas - e não para as vidinhas dos candidatos. Vão ficando espertos, os eleitores. Sabem que o "lado humano" é o seu, apenas.

Jornal de Notícias - 15 Dezembro 2005