janeiro 26, 2006

Adeus Cavaco

Cavaco Silva ganhou as eleições. Algumas almas insistem em contar décimas para desvalorizar uma vitória à primeira volta, como se os candidatos de esquerda, afinal, tivessem sido uma e a mesma pessoa, um candidato apenas. Não eram. Apenas numa coisa estavam unidos, de facto: em atacar Cavaco Silva. Fizeram-no desde Julho, permanentemente, numa guerrilha que também percorreu um caminho sujo, desde questões de carácter até ao insulto infame. Passou. Essas coisas passam sempre. São coisas de campanha, parece, como se durante a campanha eleitoral o “combate político” permitisse uma certa e “excepcional” largueza de linguagem e autorizasse a má educação e a ameaça aos eleitores. Acontece que não há interrupções de avaliação no percurso de um político. Essas coisas passam, mas não se esquecem.

Outras coisas que não se esquecerão são as expressões de piedoso desalento de pessoas que se sentem constrangidas pelo facto de Cavaco Silva ter sido eleito: se uns vivem o momento com o sentimento de terem sido “despromovidas” (como Vital Moreira), muitas outras mais não fazem do que exercer o seu complexo de classe contra o filho de Teodoro Silva, o modesto homem de Boliqueime. Essa punição classista e snob, usada sem parcimónia pela esquerda e pela direita, junta-se à miséria da ideologia que andou no palco durante a campanha: Cavaco seria apenas o economista a quem falta “uma dimensão humanista” (ninguém explicou bem o que isso é), o professor, o homem que não exibe a sua biblioteca diante das câmaras nem cita de cor os “Lusíadas”. A esses falta perceber que “cultura” não é essa invocação permanente de bibliotecas – mas um certo sentido de tolerância, a disponibilidade para ouvir, o esforço de compreender, elegância na forma como se escutam as críticas e como se tolera a diversidade.

Creio que, depois destas eleições, regressamos à normalidade, à vida concreta, às tarefas comuns. Não vão cumprir-se as profecias de tragédia e de catástrofe, anunciadas para o caso de Cavaco Silva ser eleito. Os eleitores não tiveram medo; já ninguém receia ameaças. E suspeito que ninguém vai exilar-se. A normalidade implica, também, que se diga adeus a Cavaco. O novo Presidente sabe o que isso quer dizer, e ele próprio o anunciou na noite da vitória: que a maioria que o elegeu se dissolvia naquele instante. Estamos dissolvidos; adeus Cavaco. O que significa, também, adeus cavaquismo. Agora é outra coisa.

Cavaco Silva tem pela frente uma tarefa rigorosamente inédita: ele é o primeiro presidente eleito que não responde pela herança do PREC ou pela tradição do anti-fascismo. Trinta anos depois do 25 de Abril, este momento traduz a inauguração de um novo ciclo na vida portuguesa. Não apenas na “vida política”, mas na sua dimensão cultural e afectiva, até aqui prisioneira da bênção dos “proprietários da história” e do “republicanismo histórico”. A sua eleição significa que a Presidência deixou de ser encarada como património dessa herança e dessa memória. Em vez do “republicanismo”, os valores republicanos (o respeito pelas leis, o rigor e a qualidade da vida pública). Em vez do respeito acrítico pelo passado, a necessidade de uma atenção permanente à vida dos portugueses. Para isso se quer um presidente: que ele seja exigente e rigoroso num país que tem de ser mais exigente e mais rigoroso. O presidente sabe que não tem de ser o exemplo ou o símbolo dos nossos lugares-comuns; esses, temos em abundância, misturados com defeitos e virtudes. Pelo contrário, tem de ser o exemplo desse novo ciclo da vida portuguesa e da transformação que o deve acompanhar.

Por isso mesmo, adeus Cavaco. Agora, senhor presidente, é consigo. Conforme estava prometido.

Jornal de Notícias - 26 Janeiro 2006