janeiro 21, 2006

Heroísmo e valentia

Se o leitor não quer esperar pela aletria que só vem na secção das sobremesas, pode entreter-se com o cabritinho assado em forno de lenha ou as caras de bacalhau servidas com arroz de feijão encarnado - as caras são literariamente chamadas “larocas”, o que serve para dizer que estamos no Porto. E bem no Porto. Na Rua do Heroísmo, que pouca gente sabe que era, antigamente, a do Prado. É ali, no centro do Porto burguês e liberal (onde se evocam os combates de 1833), que fica a Cozinha do Manel. E, se o heroísmo vem directamente do século XIX e da tradição liberal do Porto, já a Cozinha do Manel, que abriu as suas portas em 1989, evoca, antes, a tradição da nossa gastronomia. Ainda bem, porque só essa tradição permite ver, como eu vi a estas mesas, adversários políticos trinchando o mesmo cabrito - ou, em mano-a-mano, rivais do futebol comungando dos mesmos filetes de pescada.

A vocação conciliatória da Cozinha do Manel, juntando liberais e miguelistas, ficaria provada depois de uma breve analise da sua ementa, que é, nessa tradição portuense, equilibrada e pouco dada a exuberâncias. O grupo de entradas é supimpa: tripinhas enfarinhadas, costelinhas em vinha d'alhos, uma suculenta tábua de salpicão minhoto, além da alheira transmontana, permitindo ainda uma incursão relativamente galega para que se trinquem uns pimentinhos de Padrón. Nada de espanto, mas nada de reprovável.

Depois, ah!, depois, começam as dificuldades. Eu chamo “dificuldades” num restaurante aos problemas de consciência que tomará conta do leitor quando se depara com opções controversas. Enquanto decide, vigiemos a carta de vinhos, que apresenta 322 tintos, a maior parte deles nada conservadores - e uma justificada insistência em brancos durienses. Esses brancos serviriam para acompanhar as caras (ou larocas, eu já disse) de bacalhau com arroz de feijão encarnado, os filetes de pescada (brancos, muito frescos, levemente perfumados de alho, limão e pimenta) que também aparecem enlaçados com o arrozinho de feijão, ou uma cabeça de pescada que exige preparação, circunstância e tempo para a comer. Confesso que os filetes são, como se dizia na critica académica de há alguns anos, superlativos. Muito, muito bons. Depois deles depenicados, os fieis admiradores de rojões parece-me que entram num êxtase que atinge proporções metafísicas, porque estes são fantásticos; na ementa vem escrito “rojões de reco ibérico de sarrabulho à minhota, com papas”.
Por mim, prefiro o triângulo onde se apresentam os seguintes vértices: cabrito assado no forno de lenha - vale a pena experimentar esta pele tostada com vagar e sem ervas e gorduras adicionais; vitelinha arouquesa assada com arroz no forno a lenha - fatias generosas, tenras, suculentas, ligeiramente humedecidas; iscas de fígado de vitelinha de cebolada - muito bem temperadas e de corte exigente, servidas com batatas cozidas muito saborosas, como é de lei. Dependendo do dia ou da noite, há ainda um polvo assado no forno, um “arroz de frango-de-pé-descalço- (muito justamente gabado) e um bacalhau na broa. Contento-me com o que comi, mas prometo regresso. Uma das razoes por que regressarei tem a ver com a aletria, servida num leite-creme generoso, rescendendo a colesterol (do bom, está claro) e a produtos caseiros, se bem que admita pedinchar, para o café, uns bolinhos de gerimú, onde os fiozinhos de abóbora mal se desprendem da massa e do açucar. Não cheguei a provar a tarte de claras com ovos moles e gila, mas, como eu disse, eu regresso. E o leitor pode fazer o mesmo. Zé Antonio, prepara-te.


À Lupa
Vinhos: * * * * *
Digestivos: * * * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Tintos: 322
Brancos: 23
Verdes: 20
Aguardentes: 26
Portos e Madeiras: 18
Whiskies: 64
Cervejas: 12

Outros dados
Charutos: Não há
Estacionamento: Parque privativo próximo
Levar crianças: Não
Bengaleiro: Não
Reserva: Aconselhável
Preço médio: 20 Euros

Restaurante Cozinha do Manel
Rua do Heroísmo, 215 – 4300 Porto
Tel: 22.5363388
Reservas: 91.9787598
Encerra aos Domingos


in Revista Notícias Sábado – 21 Janeiro 2006