fevereiro 09, 2006

Ele ofende-nos

Vamos ser claros. A coisa é esta: estamos todos debaixo de fogo. Estamos, os que prezam a liberdade, o debate e o riso. Quem está a pôr-nos debaixo de fogo é uma multidão de crentes muçulmanos, articulados pelo fundamentalismo islâmico e pela interpretação forçada e abusiva de uns cartoons publicados num jornal dinamarquês. Por causa disso foram incendiadas embaixadas, rasgadas bandeiras, prometidos ataques a cidades europeias, ameaçados cidadãos da União, repetidas frases de apelo à violência em nome de Deus, investidas criminosas em nome da religião. Diante disso, que não é pouco, gerou-se o pânico do costume, além da tentativa de defender o indefensável só para não defender o inevitável. E o inevitável é só isto: ou somos gente livre, digna, cordata - ou nos submetemos ao medo. E o medo é a aposta do fundamentalismo, aliado à ameaça permanente da instabilidade e da irritabilidade dos altifalantes do Islão radical e do seu petróleo.

Diante desta chantagem e desta violência, que não são novas, que se percebem mas que não se podem admitir dentro de nossa casa, há sempre vozes que discordam e que acham que devemos ceder mais um pouco, que devemos ser ainda mais respeitadores e fechar os olhos às hordas que se manifestam nas mesquitas radicais de Londres ou de Damasco, e às ameaças de morte que pesam sobre os infiéis. Os infiéis somos nós. Eu sou infiel.

Diante dessa perspectiva animadora, o senhor ministro dos Negócios Estrangeiros apareceu a fazer doutrina. Toda a gente entende que, do ponto de vista diplomático, ou da "real politik", o senhor ministro dos Estrangeiros devia fazer uma declaração apaziguadora, à semelhança do que fizeram outros parceiros seus, certamente em atitude concertada na União. Mas o senhor ministro dos Estrangeiros quis mais ele queria fazer doutrina, e logo da mais dispensável e inadequada à sua figura. Daí resultou que o comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros sobre a "crise dos cartoons" é, na verdade, um raspanete passado pelo Governo aos seus concidadãos, acusando-os de confundir "liberdade" com "licenciosidade" e, ao mesmo tempo, dizendo que "o que se passou recentemente em alguns países europeus é lamentável".

Se há coisa sobre a qual o Governo está dispensado de fazer, e em especial o senhor ministro dos Estrangeiros, são declarações sobre história das religiões e sobre problemas de moral. O senhor ministro dos Estrangeiros, no seu comunicado, podia ter sido mais lacónico, menos consentâneo com a tradição inquisitorial e igualmente sereno no modo como salva a face da diplomacia da União e dos "interesses portugueses". Mas não. Apeteceu-lhe espetar o dedinho e defender o direito de uns energúmenos se manifestarem a exigir a morte de uns desenhadores e o castigo dos europeus. Em nenhuma passagem manifestou preocupação com a segurança dos cidadãos (por exemplo, dinamarqueses, seus concidadãos europeus); em nenhuma passagem do seu triste comunicado o senhor ministro dos Estrangeiros tentou apaziguar as coisas; em nenhum momento manifestou solidariedade à Dinamarca pela agressão a que está a ser sujeita. Em vez disso, na verdade, Freitas do Amaral ofende-nos a todos quando diz que Portugal "lamenta e discorda da publicação de desenhos e/ou caricaturas" ou quando jura que o desrespeito pelos "símbolos fundamentais da religião que se professa" constitui uma violação da liberdade. Nenhuma dessas coisas é verdade. Podem sê-lo na cabeça do cidadão Diogo Freitas do Amaral. Mas não o são na cabeça de cidadãos livres, honrados e decentes que não se deixam amedrontar diante das ameaças e do cerco do fundamentalismo.

Não sei se o Governo pensa exactamente aquilo que Freitas do Amaral disse. Porque, se pensar, os cidadãos que se preparem. Ideias daquelas ofendem-nos a todos. E ameaçam-nos.

Jornal de Noticias - 9 Fevereiro 2006