março 11, 2006

Felicidade na Boavista

O Bull & Bear mudou de casa e, na verdade, até melhorou. Cozinha cheia de tentações suculentas e apetitosas, repleta de pecado e de sugestões que ficam na memória. Falar disso é falar da felicidade, como se sabe.

Os restaurantes vão e vêm, cruzam a nossa memória com designações, perfumes, texturas, fragmentos de um nome, gestos, atenções. Há restaurantes que eu recordo sem ciência absolutamente nenhuma. Confesso que raramente entrariam nesta lista – são restaurantes de ocasião, acolhedores, francamente clandestinos, cheios de absurdos e às vezes de erros lamentáveis. E eu gosto deles, desses lugares de mesas disputadas, no fundo da província ou num bairro suburbano. O leitor também, e eu sei do que falo. Mas raramente entrariam nesta lista – não mencionam a grande arte gastronómica, não se perfilam com grandes resultados, grandes soluções, inovações, provas de criatividade ou, até, de rigor. Mas eu gosto deles. Demoramo-nos às suas mesas o tempo que quisermos, arrastamos a conversa, vamos sujando cinzeiros e estabelecendo regras de proximidade e de promiscuidade com o lugar, com o dono, com os empregados, com a mesa. Um prato de forno que evoca um peixe adorável; uma gelatina soltando-se sem, no entanto, se libertar de um lombo perfeito de bacalhau; um estufado cremoso onde se sacrificaram temperos, ingredientes que se encaminharam para o fogo numa ordem perfeita – nada mais simples, nada mais conservador.

E há outros lugares onde temos de fazer um ligeiro esforço, uma ligeira concessão, um risco na agenda e no paladar. E entrariam em toda e qualquer lista – como o Bull & Bear, um dos restaurantes que é preciso visitar antes de desistir de viver. Não porque toda a gente o mencione ou porque é um emblema do Porto. Mas também porque Miguel Castro Silva (o seu criador e chef) é um artista e transporta, para o seu cardápio, uma memória, uma arte e aquilo que é definitivo em qualquer restaurante – a generosidade. Os bons restaurantes sofrem desse mal – da generosidade. Como se soubessem que cada comensal, cada visitante, vem ali em busca de uma prova de afecto que não encontrou noutro lugar, noutra vida, noutra relação afectuosa ou afectiva. Eis porque considerar a cozinha um laboratório pode resultar em literatura mas é de uma leviandade muito sacana e indigente. Se uma pessoa se senta e deglute e se exibe e se encaminha para a digestão, é uma coisa. Se uma pessoa se deixa embalar, é outra: creme de grão com bacalhau lascado, borrego salteado com ervas, pescada em crosta com azeitonas, rosbife de veado com molho de mirtilos ou amêijoas com feijão manteiga são, por exemplo, estrofes de um poema épico monumental e tem arremedos líricos nas sobremesas, pelas quais, aliás começo, só para que não me falte o espaço para depois mencionar o parfait de amêndoa com mousse de mascarpone e molho de moscatel ou o gratinado de maçã com crene de baunilha e gelado (embora já tenha sucumbido, uma vez, a um creme de queijo Serra curado com pêra confitada em vinho do Porto).

Mas se há apetite (e certamente que há) eu recomendo que se prepare o estômago com uma polenta de legumes com salada (só Deus sabe como eu gosto de polenta) ou uma ligeiríssima terrina de foie-gras (mousse fantástica) além de um experiência tentadora que aconselho pelo menos uma vez na vida – vieiras (grelhadas) com endívias e ovas Avruga. Eu comovo-me por tudo e por nada, eu sei. Depois, conforme os companheiros de mesa, a escolha passa pelo magret de pato com risoto de cepes (cogumelos com textura, temperatura e cor magníficas) e pela tão ilustre pintada acompanhada de couve penca (em dias bons parece mesmo a de Chaves, lancinante e adocicada pela geada) e grão-de-bico. Também me perco pela pescada com migas de grelos e batata, porque, evidentemente, não tenho carácter nenhum – e choro pelo risoto de limão (um dos meus preferidos) com ovas de truta, pelo risoto de sapateira com camarão grelhado e até pelo bacalhau com migas de poejo e hortelã, sugestões do sul, onde também encontro a inspiração para o ensopadinho de borrego onde se escolhe sobretudo o seu pernil.
O Bull & Bear, além do mais, tem uma carta de vinhos cuidada – não numerosa e avantajada, mas cuidada, e suponho que é o restaurante do Porto com melhor escolha e sugestão de portos, o que vai sendo uma raridade nos restaurantes da cidade que empresta o seu nome ao santo vinho. Saio ligeiramente comovido, se a refeição cai bem, se fica um resto de sabor, um grão de sal a desfazer-se na boca, um rasto de palavras que se escaparam ao longo da noite e perduraram. Onde está a felicidade?, perguntava Camilo.

À lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 140
Vinhos brancos: 60
Vinhos rosés: 2
Espumantes & champanhes: 10
Aguardentes portuguesas: 8
Portos e Madeiras: 30
Uísques: 20
Cervejas: 5

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: relativamente fácil
Adequado levar crianças: não
Bengaleiro: sim
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 40 euros

Bull & Bear
Avenida da Boavista, 3431 - Porto
Tel: 22.6107669
Encerra aos sábados ao almoço e aos domingos

in Revista Notícias Sábado - 11 Março 2006