março 27, 2006

Mulheres e homens com e sem quotas

Durante décadas, as mulheres lutaram pela sua libertação. Eu não devia escrever isto assim, mas os leitores entendem e sabem ao que me refiro: conquista de direitos políticos, acesso à educação e ao emprego, fim da discriminação com base no género, criminalização da violência doméstica, reconhecimento social. Séculos de discriminação são simbolicamente incendiados de cada vez que evocamos o momento em que Margaret Tatcher, Michele Bachelet, Condoleeza Rice, Angela Merkel ou Ellen Johnson-Sirleaf assumiram lugares de poder nos seus países, da Inglaterra à Libéria passando pelo Chile e pela Alemanha. Qualquer pessoa decente reconhece que, à luz dos valores dominantes no Ocidente, esses momentos são importantes; assinalam o fim de uma tradição machista e discriminatória assente em vários séculos de ensinamentos teológicos, morais, filosóficos e biológicos.

O governo português, na sequência de uma tendência legislativa que tomou conta da Europa, decidiu também impor um projecto de lei sobre a paridade (as famosas quotas) que determina que qualquer lista que se apresente a eleições tem de contar com, pelo menos, um terço de mulheres. Ou de homens.
Infelizmente, o próprio governo não segue esse princípio e a quantidade de homens presentes no gabinete de José Sócrates é muito superior aos quatro quintos, num país em que as mulheres são 55% da população.

A medida é-me quase indiferente. Se se tratasse de melhorar a qualidade das listas eleitorais, tínhamos dado um passo em frente. Em certos países, os candidatos têm de prestar prova de que são alfabetizados. Mas não é isso que interessa e sim o problema da paridade.
Frequentemente os governos de gente bem intencionada pretendem obrigar-nos a sermos felizes. Felizes, saudáveis, com bom aspecto, leitores de boa literatura, cidadãos interessados em causas humanitárias, amigos dos animais e respeitadores da paridade. Para isso, avançam com leis, como é o seu dever. Como disse o líder parlamentar socialista, mostrando do que se trata, “a aprovação da lei depende apenas do voto do PS, porque se trata de uma lei orgânica, de maioria simples”. Ou seja: legislar não custa nada. Custa muito mais compreender a realidade.

Não sei o que pensará uma mulher que entra no parlamento pela mão de uma fantástica mas discriminatória quota de 33,3% -- se isso lhe reconhece o seu mérito como deputada ou se acaba por sentir-se um mero instrumento orgânico nas mãos da oligarquia do seu partido. É assunto que me não diz respeito. Mas o país tem mudado substancialmente, para melhor, e a quota de 33,3% é ridícula. As mulheres têm as melhores notas nas universidades, estão à frente dos homens quando se trata de avaliar índices de leitura e de frequência escolar e a sua participação na vida empresarial e na administração pública é muito mais do que significativa – ou seja, na vida real, elas ocupam mais do que os 33,3% que o parlamento lhes reserva.

Querem as mulheres entrar no parlamento por via administrativa, como uma concessão dos mandarins? Ou querem, se lhes apetecer, se estiverem nessa disposição, e porque a lei geral lho permite, concorrer com esta gentinha que domina os partidos e as secretarias, e lutar em plano de igualdade sem terem de se mostrar agradecidas e sem terem de participar nas comissões e agrupamentos de mulheres dos partidos políticos, como uma associação de gente exótica que se reúne para dar beijinhos aos líderes? A mim, o assunto não me preocupa. Mas devia preocupar as mulheres que não se sentem representadas por uma quota de 33,3 por cento, uma ninharia machista.

Jornal de Notícias - 27 Março 2006