março 20, 2006

O que está a matar a vida política

Os jornalistas, sobretudo, têm saudades "dos grandes congressos do PSD". Eram momentos interessantes e confortáveis, muitas vezes não programados e feitos à medida para que pensássemos que o PSD era um partido onde tudo podia acontecer. Na verdade, já quase tudo aconteceu ao PSD, inclusive a subida de Pedro Santana Lopes a primeiro-ministro. Foi um interessante momento na história da vida portuguesa que será recordado com aquele pudor a que o ridículo obriga.

Ouvi durante toda a sexta-feira lamentos consideráveis sobre o como e quanto os congressos do PSD já não eram os congressos de antigamente. Na rádio e na televisão, à medida que se aproximava o momento histórico da abertura das portas da salinha do pavilhão Atlântico (ao lada da sala onde decorreria a assembleia do Sporting), jornalistas e comentadores lamentavam-se. Todos sabiam que Santana não iria aparecer (atrasado, como se viesse de um jantar onde se comeu bem) para discursar até às três da manhã, que Luís Filipe Meneses dessa vez não ia estragar tudo com uma frase fatal, que não iam realizar-se reuniões nos hotéis perto da sala de congressos, que o telefone de Marques Mendes ia estar relativamente tranquilo, que não haveria tempo para aqueles militantes anónimos e indiscretos. Enfim, não íamos ter circo.

Este lamento tem razão de ser. Este e outros. Na verdade, os congressos dos partidos já não são como os grandes congressos de antigamente. A razão não tem a ver, como se poderia também pensar, com a "maturidade da democracia portuguesa", mas com "a natureza da política à portuguesa". Se bem que o congresso do PSD se revestisse de circunstâncias excepcionais (tratava-se de adiar para daqui a um ano o ataque a Marques Mendes, enquanto ele coze em lume brando até lá), a verdade é que a política à portuguesa está desinteressante nesse capítulo que nos interessa - o dos confrontos. Claro que nos interessam os confrontos; é pelos confrontos que se percebe se há, ou não, vida política. E, de facto, o cenário é triste.

Em primeiro lugar, todos os políticos andam bem educados de mais. Tirando aquele pobre sujeito da Madeira, os políticos comportam-se como católicos antes do crisma. E mais quando acontece alguém ameaçar ultrapassar os limites, aparece logo um coro de vozes muito morais e sensatas, dizendo que "fulano não pode dizer" o que, precisamente, esperávamos que ele dissesse. Esta fantasia de uma democracia politicamente correcta está a destruir aos poucos a vitalidade da nossa vida política. Em segundo lugar, os partidos não gostam deles próprios. Veja-se o que acontece com o CDS, com o PSD, com o PS ou com o BE. Há uns rumores, mas não há debates. Há sinais, mas não há ninguém a falar claramente. Até o BE assumiu que precisa de mudar (oh, novidade!). O PS (o partido) não gosta do seu secretário-geral nem do seu Governo - mas aprova ambos porque são ambos a garantia do poder, e são o produto mais apresentável que têm para o mercado. O PSD espera o momento de acertar contas e de nomear alguém para o lugar de Marques Mendes, alguém que "o povo" aceite melhor ou que os estudos de imagem achem mais aconselhável.

Quando se escutarem lamentos sobre a morte da vida política (ou sobre como estão mortiços os congressos do PSD - os do PS foram quase sempre lúgubres), pensem em como, verdadeiramente, já deixou de haver vida política.

Jornal de Notícias - 20 Março 2006