março 24, 2006

Uma explicação desnecessária mas que mesmo assim vale a pena

Uma série de comentários e de mails alertam-me para o carácter amoral, imoral e vergonhoso dos posts deste blog intitulados «O Cantinho do Hooligan». Eu sei. Sei que são amorais, sei que são imorais e que a maior parte deles, não sendo vergonhosa, me devia fazer corar de vergonha caso se tratasse de uma coisa séria. Mas não. É futebol. Não lhes retiro uma linha, uma vírgula ou um pigmento de desvergonha. Sou um hooligan. Interesso-me vagamente pelo 4x4x2 e não posso dizer que pelo 4x3x3 tenha uma paixão de vários anos; o 3x3x4, esse, deixa-me a pingar de comoção, mas só porque serve para contrariar.

Rio-me depois de escrever isto. Conheço os alas, o papel do trinco, a beleza do jogo tirado a régua e esquadro, mas nada me deixa mais comovido do que uma jogada bem feita, se for da minha equipa. Também ouvi um cavalheiro que passa por ser o Rui Santos perorar durante 35 exactos minutos sobre questões estratégicas e de «planificação política» acerca de um penalty mal assinalado, de uma coisa que chamam «património do clube» ou de um tornozelo especialmente preparado para levar traulitada. Há mails e posts de outros blogs que referem os meus «cantinho do hooligan» como produto de uma alma perturbada, se se der o caso de eu ter alma, ou de um cérebro desequilibrado, coisa de que eu abdico quando se trata de ver futebol como eu gosto de ver futebol, que é entre gente que dispensa sermões, moralidade a todas as horas do dia e declarações de concordância com Gabriel Alves. Quando eu menciono Gabriel Alves ou Rui Santos, esclareço que não ponho em causa a idoneidade profissional dos cavalheiros enquanto comentadores de futebol, coisa que não me interessa grandemente.

Eu sou um hooligan nessa matéria e já vi jogos de futebol entre os Super Dragões, tal como entre o pessoal da Torcida Verde e até à beira dos Diabos Vermelhos -- mas só conheço os hinos dos Super Dragões («ninguém cala a nossa voz» é o melhor, esclareço desde já). Tenho cachecol, cartão, irresponsabilidade reconhecida e várias camisetas do FC Porto. Não estou muito interessado em reconhecer que o João Moutinho é um bom jogador (em momentos de sobriedade absoluta até gosto de Polga, porque era gremista, ou de Liedson e de Carlos Martins e Miguel Garcia) porque isso não faz a minha felicidade -- coisa que já acontece quando um dos meus marca um golo, sejam eles McCarthy, Lucho, Quaresma, Adriano ou Raul Meireles. Mas se me pedirem muito sou capaz de enumerar uma lista de onze bons jogadores da Liga, só contando com o Sporting, o Braga, o Guimarães, o Nacional ou a União de Leiria.

Não me interesso pelos limites estritamente legais do jogo da bola. Prefiro que sejam tribunais comuns a julgar aquela gentinha que anda à volta do assunto. Acho que os ábritros não deviam obedecer à Liga nem à FPF. Acho que Scolari é um burro, futebolisticamente falando, mas gostava dele no Grêmio; tal como Mourinho era um chato tremendo antes de ter ido para a União de Leiria e para o FC Porto; o próprio Jardel era genial enquanto estava no FC Porto mas passou a ser um desgraçado de um cearense quando foi para a Turquia e depois se perdeu em Lisboa. Continuo a admirar Jorge Costa.

Não se enfureçam nem tentem evangelizar-me, chamar-me à razão, educar-me os modos, civilizar-me, lembrar-me «a beleza eterna do grande futebol» (sim, ela existe em algum lado). Agradeço as lições e os conselhos amigáveis para que recupere a minha sensatez e algum pudor além do sentido de justiça. Mas isto é só futebol. De cada vez que Petit cai rasteirado, de cada vez que Simão falha seja o que for, eu sinto-me mais próximo da felicidade. O mesmo acontece quando a França ou a Itália perdem um jogo.

Para mim, Pavão jogava futebol como ninguém. Tenho um poster de Cubillas envelhecido, mas guardado nos meus caixotes. Se insistirem falo de Rolando, de Celso, Eduardo Luís, Madjer, Juary, Gomes, Derlei, Deco e também de Domingos, Jaime Magalhães, Bené, Marco Aurélio, Duda, Teixeira e Teixeirinha, Gabriel, Oliveira, Rolando – a primeira equipa da minha memória, que contracena com outros nomes mágicos de outros tempos: Monteiro da Costa, Pinga, Virgílio, Pedroto, Barrigana, Hernâni, Seninho ou Siska. Mas não é isso que me interessa. O hooligan do «cantinho do hooligan» não se interessa nem por isso. Ele só ri. Mesmo quando perde um jogo, ele ri. E é a vida, assim.

in A origem das Espécies – 23.03.2006