abril 01, 2006

Para fazer inveja ao leitor

A Galeria Gemelli é um restaurante imprescindível no roteiro lisboeta. 0 chefe deste santuário frente ao Parlamento merece todos os elogios do mundo.

É só para vos fazer inveja, leitores amigos - mas a nossa vida é assim: uma coisa é ainda melhor se causar inveja em alguém. Pobre género humano, pobres de nós. Dois dias antes tinha ido almoçar ao restaurante de Augusto Gemelli, um italiano (da Lombardia) que está em Portugal desde Agosto de 1996, tempo suficiente para Ihe ser atribuído o passaporte, quanto mais não seja pelos fantásticos serviços entretanto prestados aos nossos estômagos - mas o Galeria Gemelli só tem as portas abertas desde Dezembro de 1999.

Volto ao almoço, que, para ser suave, começou por uma entrada simples e perfumada de novilho, marinado durante dois a três dias em ervas com louro e cravinho e numa salmoura de sal grosso - cortado em fatias, na companhia de tirinhas de aipo e de lâminas de um queijo também suave, um 'grana padano', além de um fio de azeite com trufa branca. Faço a descrição assim, porque o objectivo é, naturalmente, o de causar inveja. Por isso, depois de o estômago (e, muito mais do que ele, as papilas, a boca em geral e os olhos) estar em processo de afinação, passamos a uns 'orechietti' acompanhados de grelos picantes salteados (de sabor fantástico, surpreendente) e de camarões, e terminamos com uns rolinhos de novilho com queijo 'peccorino' (ovelha) e uma tira de toucinho. Aplauso geral, enquanto vinha a sobremesa.

Desta vez ao jantar a opção foi diferente. Mas o objectivo manteve-se: causar inveja. O método usado é simples: pedir ao excelente chefe de mesa que Augusto Gemelli, recolhido na cozinha, trate de nós e faça as honras da casa em vez de nos perdermos em escolhas, ou seja, optámos pelo menu do chefe. Para complementar, em matéria de vinhos escolheu-se a opção a copo, o que permitia que cada prato fosse acompanhado por um vinho diferente, além do branco seco que se pediu para aperitivo. A 'fogaccia' da Galeria, que vem no cestinho com mais dois pãezinhos simples, é para mim indispensável: tem azeite, tem ervas, tem sal (grãozinhos soltos a brilhar na sua crosta suave, inclusive) e pode molhar-se em três azeites diferentes, um deles decorado com algumas gotas de vinagre balsâmico. Isso é um convite, apenas, para terminar o nosso copo de vinho branco com um pequeno mimo de Augusto, um mexilhão gratinado. Para primeira entrada vieram então uma empadinha de queijo gorgonzola e pêras, cercada por uma redução de Porto 'tawny' (que foi recebida por um copo de 'Vina del Vero', branco, um 'Gewurtztraminer' de 2001, chileno) e um 'sofflato' recheado de cebola e 'ricota', rodeado de brócolos picantes (na companhia de um outro branco, o 'Arinto de 2004', de Jose Augusto Nevado). A procissão tinha começado. A segunda entrada foi então o pretexto para aparecer um 'rose', suave e de cor brilhante, um 'Carm de 2004': tratava-se de um creme, aveludadíssimo, de grão-de-bico que descia sobre camarões secos cozinhados com sal aromático e alho-francês. Logo depois, 'tortelloni de foie gras' e pêras, com molho de trufa preta e cogumelos bravos, com um copo de um fantástico 'late harvest', que nos reenviou ao Chile: um 'Concha y Toro Sauvignon Blanc', de 2002. Aplauso nada comedido, diga-se.

O mundo recompusera-se no final de uma longa semana de trabalho, e o prato seguinte iria ajudar. Durante o processo de negociação, logo no início do jantar, tinha mencionado a vontade de provar um 'Le Serre Nuove', de 2001, 'Tenuta dell'Ornellaia', tinto da Toscana. Fizeram-me a vontade com o vinho, e fui também servido de um lombinho de borrego recheado com uma massinha de azeitona preta e tomates secos, envolto em beringela e, depois, em couve-lombarda praticamente cozinhada em vapor. Nesta altura, como se compreende, senti-me um personagem de 'O Padrinho', balbuciando coisas sem nexo acerca do sentido que a vida faz. Até aí adivinhou Augusto Gemelli: enviou para a mesa, enlaçado (e de que maneira!) um cálice perfeito de moscatel siciliano, um 'Riflessi', um 'cannolo de ricota' com 'zabaione' fresco (que se obtém, no seu modo básico, com gemas de ovo, açúcar e marsala), o que me recordou aquela passagem do filme de Coppola: "Leave the gun, take the cannoli." Com os cafés pedimos uma 'grappa' (vieram duas amostras, uma 'Nonino' e uma 'Alexander', com 40% e com 60% de álcool, respectivamente) e pensei no trabalho de Augusto Gemelli, esse viajante que percorreu a Índia, a Tailândia, o Laos, a Argentina, o Chile - e que gosta de um dos meus lugares de eleição, Ushuaia. Um homem que gosta de Ushuaia, lá a beira da Antárctida, no fim do mundo, tem de cozinhar assim.

À lupa
Vinhos: * * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos Tintos: 110
Vinhos Brancos: 57
Espumantes & Champagnes: 20
Grappas: 18
Vinhos de sobremesa: 16
Portos e Madeiras: 16
Uísques: 12
Águas: 12

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Difícil, mas há parque perto
Levar Crianças: Não
Área de Fumadores: Sim
Bengaleiro: Fundamental
Preço médio: 40 Euros

GALERIA GEMELLI
Rua de Sao Benlo, 334
12OO-822 Lisboa
Tel: 21 3952552 Encerra ao domingo e segunda-feira

in Revista Notícias Sábado - 1 Abril 2006