abril 17, 2006

Respeitinho pelos políticos

O agora líder parlamentar da bancada socialista deslocou-se à final europeia futebolística de Sevilha, em 2003, com o argumento de que se tratava de "trabalho político". Não só ele mais quarenta deputados faltaram nesse dia ao Parlamento, incluindo José Sócrates. As justificações foram apresentadas e parece que ninguém (eleitores, responsáveis políticos, comentadores) ficou convencido - mas nenhum deles foi penalizado. Eu acho bem. Os deputados deviam poder ter ido à final de Sevilha ou à de Genselkirchen sem apresentarem desculpas esfarrapadas como essa, a do "trabalho político" entre as claques dos Super Dragões e dos Celtic Fans. Mas deviam ser penalizados se apresentassem desculpas esfarrapadas em que ninguém acredita, e ser-lhes-ia descontada no salário essa farra a quem tinham direito como qualquer outro cidadão. Eu compreenderia. «Fomos à bola, pedimos autorização ao patrão, tirámos um dia a compensar.» Já me parecia bem.

Chegámos a esta situação, de discutir coisas banais e ridículas como a ida de um deputado a um jogo de futebol a uma quarta-feira, por causa dos próprios deputados e dos abusos cometidos por muitos deles. O caso das viagens dos deputados, sensivelmente na mesma altura, foi outro acontecimento. Periodicamente, o presidente Sampaio, generoso e melodramático, aparecia a pedir respeito pelos políticos - o que aconteceu também um mês depois da final de Sevilha e durante os casos Isaltino e Fátima Felgueiras, aliás acompanhado do primeiro escândalo de convocação de políticos no processo Casa Pia. Foi falta de pontaria. A verdade é que não se tratava de falta de respeito pelos políticos, mas de evidências gritantes que Jorge Sampaio não podia esconder da opinião pública. Toda a gente que se manifestava contra a "perseguição aos políticos" esquecia-se de mencionar que, se havia políticos a serem investigados pelos tribunais ou pelos magistrados, não era por serem políticos - era por serem cidadãos sob a alçada da lei.

Regressa-se ao tema porque parece que, na semana passada, houve 120 deputados faltosos. Digamos que é uma quantia substancial de cérebros e de votos em falta no Parlamento. Os cérebros não faziam muita falta, mas os votos eram decisivos. Infelizmente, cérebros e votos costumam andar juntos no parlamento, o que, sendo estranho, é irremediável. Apareceram então abundantes descrições de como muitos deputados "picam o ponto" (imagem deplorável e assassina) e vão "tratar da vidinha" (mais deplorável ainda), ou de como são arrebanhados para votações de acordo com as conveniências dos seus grupos parlamentares. Nada disto constitui surpresa, mas é uma imagem francamente divertida para associar a quem aprova leis sobre absentismo e desorganização da produtividade.

Não parece que a falta desses 120 cérebros no Parlamento, durante essa tarde, tenha prejudicado grandemente o país que se preparava para as miniférias e a tolerância de ponto. Mas o país reparou neles, encolhidos, escondidos - e fora do Parlamento. Desactivados.

E, se não há penalização que lhes valha (recordo que Jaime Gama se opôs, na altura, a que Mota Amaral punisse os deputados que foram efectuar "trabalho político" para Sevilha), a verdade é que nada nos impede de, como cidadãos, olhar para esses 120 lugares vazios e sorrir. Estão justificadas as nossas "pontes", os nossos "feriadões", as nossas faltas, o nosso absentismo malandro, a nossa manha preparada para obter mais uns dias de férias ou uma tolerância de ponto a mais. A menos, claro, que se confirme que os políticos passem, de acordo como as propostas que andam por aí, a ter um tribunal próprio que os abrigue destas indignidades. Indignidade por indignidade prefiro-as bem feitas.

Jornal de Notícias - 17 Abril 2006