maio 15, 2006

A liberdade e a natalidade

Recebi algumas cartas e mensagens indignadas a propósito da minha coluna de há quinze dias, escrita sobre a delirante intenção de as autoridades promoverem o aumento da taxa de natalidade à custa de benefícios fiscais para as chamadas famílias numerosas. Todas essas cartas falavam em nome da economia, o que agradeço com alguma comoção. É sempre bom ter resposta à altura, e esclarecida - mas escusam. O que eu escrevi foi simples: as autoridades queixam-se de que os portugueses fazem poucos filhos e que a nossa pobre segurança social vai ter poucas hipóteses de sobreviver como está; daí a vontade de premiar as famílias numerosas, fornecedoras de carne para canhão, ou seja, de contribuintes activos para pagar o desvario das contas do Estado e o futuro da Segurança Social. Estas coisas são simples e requerem ser ditas de maneira simples e directa: o Estado que vá ter filhos onde quiser e trate de não desperdiçar o dinheiro dos impostos que arrecada. É essa a base do nosso contrato social.

Mas há mais do que isso. Há a memória. E todos recordam (e se não recordam, deviam) que há uns anos, não muitos, e para efeitos de propaganda, nos foi garantido que era especulação falar-se de crise na segurança social. Por outras palavras, os socialistas garantiam nessa altura que podíamos continuar a viver sem a espada sobre a cabeça. Parece que não era verdade. A espada está aí. Desta vez, até os sindicatos concordam.

Alguns dos meus correspondentes foram severos demais: que eu estava a brincar com coisas sérias, que não percebia os fundamentos da irrequieta ciência da demografia, e que não devia colocar questões de liberdade pessoal à frente das exigências da sociedade. Uma das acusações precede: a de que eu percebo apenas o essencial de demografia. O resto nem vale a pena comentar, sobretudo essa ideia tão absoluta como absurda de que as nossas escolhas pessoais devem ser preteridas diante das exigências do Estado ou da sociedade. Precisamente, devemos defender as nossas escolhas pessoais. E devemos defendê-las contra os que nos querem impor as "escolhas da sociedade", como se soubessem interpretá-las e fossem seus proprietários. E, se necessário, devemos defendê-las contra os chamados "interesses da sociedade e do Estado". Parte dos problemas vem de as pessoas abdicarem de defender as suas ideias e interesses em benefício do que seriam os "interesses colectivos". A história ensina-nos que os "interesses da sociedade" são sempre os interesses de quem os interpreta. Também por isso, não vale a pena pedir aos cidadãos para se reproduzirem com mais afinco e empenho, aumentando o número dos futuros contribuintes, se nos lembrarem, ao mesmo tempo, que são os nossos filhos que vão pagar a conta do TGV, da Ota, das reformas de gestores públicos que arruinaram empresas públicas sem terem sido punidos, ou de más opções em obras públicas e administração das contas do Estado. Pedir mais progenitores aplicados, acenando-lhes com a estabilidade da segurança social futura, é fazer pouco dos contribuintes e das famílias actuais.

Os meus ilustres críticos falam em nome da sociedade; eu disso não percebo e até desconfio bastante. Limito-me a sugerir que foi exactamente este discurso "em nome da sociedade" que levou, em parte, à ruína da segurança social. A solução, descobriram agora, é pedir às famílias que sejam mais numerosas e se reproduzam convenientemente de acordo com "os interesses da sociedade".

P.S. - De então para cá, os dados acumularam-se há também o flagelo moral do divórcio. E agora? Vão dar subsídios a quem não se divorcia?

Jornal de Notícias - 15 Maio 2006