maio 01, 2006

O Estado tem grandes ideias

A ideia de que a fa­mília é a célula da sociedade não me incomoda (embora não concorde com ela), nem acho assun­to para discussão. A ideia de que as famílias numerosas é que são famílias, porém, tomou conta do pensamento dominan­te na propaganda sobre fiscali­dade e segurança social. Em linhas gerais, o Estado tomou a seu cargo a definição da família numerosa como família financiável e premiável. O Estado festeja-a, finalmente, e indica aos prevaricadores, que têm menos filhos, ou por algum mo­tivo não os têm, o caminho justo, generoso e tam­bém católico, de reprodução para benefício da comunida­de.

Os ideólogos da segurança so­cial e da demogra­fia olham a sociedade e exigem, como o profeta: ide e multiplicai-vos. E acrescentam: disso depende a segurança social e, bem entendido, a nossa sobrevivência demográfica. Este desejo é francamente inspirador e, vamos lá, devia dei­xar-nos inquietos - e corados de vergonha. O Estado pode olhar para os seus cidadãos e repreen­dê-los porque eles não trabalham o suficiente, porque eles abusam do álcool ou do ex­cesso de veloci­dade nas estradas. Mas, em boa verdade, não pode punir (fiscalmente) aqueles que não se reproduzem convenientemente, taxando-os de forma mais pesada e com um tom claramente repressivo.

Não porque seja ilegal o facto de o Estado premiar quem tem uma actividade sexual mais acti­va ou quem não usa anticoncep­cionais. No momento que vive­mos, esse incentivo à sexualida­de conjugal é sempre bem-vindo. Andamos tristes e, com o Verão à porta, quem sabe se o país não desata, com mais afinco, a dedi­car-se a práticas sexuais que o li­vrem do medo do amanhã. É criticável, claro, mas pode fazê-lo.

Mas é preciso, en­tretanto, alertar os ci­dadãos para esta ar­madilha: o Estado não quer que as pessoas façam sexo, atenção; o Estado quer mão-de-obra, população, con­tribuintes, elei­tores, carne para canhão. Quem quiser, dá - quem não quiser, não pode ser acusado de falta de pa­triotismo. O eng.° Gu-terres, ainda enquanto candidato a primeiro-ministro, já se queixa­va amargamente da falta de repro­dução nacional e usou o tema como argumen­to eleitoral, daí se inferindo que os portugueses não se entregavam às alegrias da procria­ção porque o cavaquismo os tinha depri­mido ou lhes tinha provocado alguma das disfunções do costume.

Ora, o Estado não quer cida­dãos distraídos desse objectivo disciplinador que, finalmente, concilia anos de pregação moral e católica com os desejos de qualquer política demo­gráfica de um regime socialista à antiga (excep­to" na China porque, como se sabe, a China anda ao contrário).

Pessoalmente, compreendo a felicidade dos progenitores de uma família numerosa: quatro, seis, oito, 12 filhos reunidos à mesa, encami­nhando-se para a escola, dor­mindo em camaratas e inco­modando as pessoas na praia. É a vingança contra Herodes. O Estado premeia essa felicida­de - punin­do fiscal­mente quem não vê grande alegria na reprodu­ção, quem não quer ter se­não um filho, ou, simplesmente, quem não quer ou não pode ter filhos.

Este discurso fiscal do Estado acaba por encaixar na crítica aos europeus que, egoístas, se recu­sam a transformar os seus apar­tamentos em velhas casas de fa­mília, cheias de crianças que daí a uns anos vão contribuir para a Segurança Social.

É evidente que há um proble­ma demográfico sério. Mas pen­sar que as pessoas vão ter filhos quando a vida está como está, quando a vida é como é, como os impostos estão como estão, já me parece um excesso de optimismo.

in Jornal de Notícias – 1 de Maio 2006