junho 15, 2006

Da série "Noite, o que é?" [11 - 20]

NOITE, O QUE É? 11.
Somos ligeiramente escravos da insónia. Podíamos dormir, sim, esconder-nos da noite. Há uma luz em qualquer lado, em qualquer lado se encontra. Uma janela. Um sabor, um cheiro que me persegue. Depois, como um relâmpago, acende-se uma letra branca a meio da noite, ficamos à sua espera dela durante horas, para que nos livre do medo e nos prepare para o que há-de vir. Um perfume que me persegue, a todas as horas da noite, entre dois mares.

NOITE, O QUE É? 12.
A maior parte das vezes, a noite é uma espera. A luz vem a meio da noite, às vezes não vem, um fio atravessa o céu. Lembra essas paisagens, ramagens das árvores, tardes pacíficas, a vida que há-de vir. Nestas alturas — agora — os dias mais luminosos, incendiados, aparecem a meio da noite, como uma visão, uma letra magnífica. Coisas que não se ouvem, coisas nómadas, súplicas, colibris, todas as coisas que importam. A noite ocupa-se nisto, enumerando tudo o que fica de algum lado do mar, escrevendo, poisando os braços sobre a mesa.

NOITE, O QUE É? 13.
Uma voz. Um sopro. A chuva que caiu durante a noite sem ser escutada. Passar um tempo esperando outro. O sabor do café, recordas o sabor do tempo, da voz. Como se estivesse aqui. Nesta altura chegam as perguntas, entram pela janela, uma perturbação sem nome, coisas vadias.

NOITE, O QUE É? 14.
Os nómadas estão sempre noutro lugar, falam das coisas da noite: respiração, páginas lidas, telefones, ruídos ocasionais — até chegar a insónia verdadeira. Nada interrompe esse delírio nem esses sonhos. Coisas fantásticas presas por um fio, recordadas todos os dias para que a vida tenha uma história para acontecer. De noite espera-se mais profundamente (mesmo que se ame a manhã, a luz perfeita do céu, a primeira luz do mundo). Passeios junto da água, idas ao supermercado, transplantar árvores, almoços tardios, recuperar o tempo. De noite espera-se mais profundamente.

NOITE, O QUE É? 15.
Agora, que regressou o frio, a noite é ainda mais difícil. Eles pensam que ela significa apenas escuridão, aquele período entre a luz mais intensa e a que vem, como um aviso, trazer a insónia. Não é assim: há os ruídos da noite, as imagens que ela traz como um incêndio, todas as coisas do céu, todas as coisas do mar, uma lembrança, um esquecimento. A espuma das noites. Coisas que não se suportam, por estarem distantes.

NOITE, O QUE É? 16.
Fico perdido — essa imagem enche a noite. Mês após mês, espero o mês seguinte. Não tem segredos, isto, mas tem mais sentido em segredo, como se apenas esse relâmpago se pudesse esconder no meio do céu.

NOITE, O QUE É? 17.
A voz que apazigua, a voz que ri, a voz que entra por todo o lado como um vendaval, ou só como um recado, uma lembrança. No meio da insónia, escreve-se muitas vezes sobre essa voz que atravessa todos os tufões, as ondas, a melancolia, o assombro, a malícia, a penumbra, a voz a que se pertence sem saber. Voz no meio do sono, voz que acorda de repente, voz que traz búzios, voz no meio da cinza. Emudece-se, por essa voz. Emudece a noite.

NOITE, O QUE É? 18.
Vejo essa imagem por instantes. É só por instantes; abre-se a noite, atravessando o mar, o perfume basta, só o perfume, um fragmento, a pele, uma coisa proibida. Há coisas mais felizes, mas nenhuma como esta.

A NOITE, O QUE É? 19.
A gripe, por exemplo. Nestas alturas ouvem-se todos os ruídos à volta, atravessa-se o fim da tarde com a sensação da cura, do abandono. Todos os ruídos estão dentro da cabeça, sobretudo aqueles que amamos. Chá, silêncio, um telefonema. Livros fechados. Coisas que não se suportam, por estarem distantes — as árvores, o riso, a relva, o mar, a comida, até a comida, a música, o vento na varanda.

NOITE, O QUE É? 20.
Muitas vezes não durmo para poder continuar a ver isto: tudo o que amei, o que vem de longe, do outro lado do mar. Tudo interrompe estas imagens; tudo desperta palavras de outra gramática, de outra língua, secretas, jardins onde as duas árvores maiores nunca estão abandonadas, tudo o que vai acontecendo à sua sombra. Estranhas coisas acontecem desde que me levanto, nos dias seguintes — a beleza é uma memória que não sai do meio dos olhos, que não se cansa, não se esgota. É por isso que muitas vezes não durmo, para continuar a ver, a não ser que nos encontremos mais tarde, ou apenas nos nossos sonhos.

Textos publicados originalmente no Blog "Aviz"