junho 17, 2006

À vista do céu

Jantar no A Travessa, agora instalado num convento no limite da Madragoa, é um prazer acrescido desta vista deslumbrante: o céu de Lisboa durante o crepúsculo. Comida a condizer.

Cansaço, muito cansaço – o leitor sabe, certamente, o que isso é nesta altura do ano, condenada aos primeiros grandes calores, a essa lassidão que toma conta do corpo e leva atrás de si o que resta do espírito. Corpo e espírito pedem descanso, pedem atenção, pedem cuidado – mas as semanas actuais são o que são, cheias, quentes, intensas. E, devo dizer-lhes, o apetite tem os seus devaneios, as suas distracções.

Agora, que a introdução está feita, recordo uma destas tardes lisboetas depois de um passeio pela cidade, carregado de livros antigos comprados como “oportunidade” da Feira. Jantar cedo é um bem inestimável, para quem pode. Normalmente, ai dos que têm os seus horários minados, estou preparado para jantar às oito e meia, o que significa que só se janta depois das nove, quando tenho sorte. Mas o sábado permite jantar a horas nórdicas ou seja, quando o sol ainda ilumina as ruas e nos mostra o caminho, que desta vez se ficou pelos limites da Madragoa em vésperas de Santo António, o que significa que havia lugar para estacionar por perto apesar de se ouvirem marchinhas e de as varandas estarem engalanadas de papelinhos e bandeirolas; no antigo Convento das Bernardas existem um pátio e um claustro dignos de atenção – é onde actua agora o A Travessa, antigamente na Travessa das Inglesinhas, ao Quelhas (quando era lugar certo de muito político com bom gosto e de certos autores que muito prezo). Chamávamos-lhe “as belgas”, e ninguém levava a mal, dado haver um cruzamento entre a chamada “cozinha belga”, que era de inspiração belga, e o melhor da simplicidade lusitana – o que lhe ficava muito bem. O “boudin noir” era muito bom, o bife com pimenta verde seguia-lhe os passos, os mexilhões (“les moules”) uma curiosidade para quem era curioso e uma fonte de nostalgia saciada para quem conhecia a tradição belga.

Algumas das especialidades passaram da Travessa das Inglesinhas para o Convento das Bernardas, sendo uma das mais festejadas a simpatia, a cordialidade e a passagem de pratinhos de onde são servidos, à medida que saem da cozinha, ovos com cogumelos, lombinho de porco, queijo de cabra frito (panado) com compota de morango, farinheiras ou pimentinhos Padrón. O pão é cozido no próprio restaurante, em forno de lenha. E, depois, tem isto de extremamente agradável: o céu. Jantar no pátio, rodeado dos velhos claustros, em chão irregular de pedra, em mesas e cadeiras que atravessaram um século, é uma recomendação especial.

A ementa, essa, varia substancialmente porque depende dos produtos frescos que chegam à cozinha: peixes e legumes de qualidade marcante. No meu dia de visita havia arroz de corvina (muito saboroso, embora a dose merecesse mais de arroz e mais de corvina), raia no vapor com alcaparras, filetes de peixe-galo, linguadinhos, e, no capítulo das carnes, além do “magret de canard” que faz parte do património da casa, um tournedó de touro bravo (suculento e muito tenro, recomendável), escalopes de “foie gras”, perna de cordeiro no forno e vários bifes a pedido (todos eles de excelente corte, embora a lista dos molhos seja permissiva ao ponto de apresentar companhia de queijo da Serra – não ligue, é arrepio meu). As sobremesas eram límpidas como aquele fim de tarde: sericaia, com as respectivas ameixas de Elvas (pingando açúcar líquido, lindas, festivas, luminosas), “mousse de cassis”, pralinés de chocolate (estamos em terreno belga ou não?), tendo o meu grupo optado por um misto glorioso de frutas e doces, que preparou o caminho para o café.

Além da carta de vinhos prazenteira e cuidada, o hóspede (deixemos que seja hóspede, porque se trata de uma casa deste tamanho) pode ainda optar por uma bela cerveja de trigo à pressão (pode pedir “la blanche”, e recordar a canção de Jacques Brel), que ninguém leva a mal. O céu, belíssimo. As velas acendem-se para amparar o crepúsculo. Nem parece o centro de Lisboa.

À Lupa
Carta de vinhos: * * *
Carta de digestivos: * * *
Facilidade de acesso: * *
Decoração: * * *
Serviço à mesa: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Vinhos Tintos: 90
Vinhos Brancos: 50
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 28
Aguardentes & Conhaques: 30

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Difícil
Adequado levar crianças: Sim
Área não-fumadores: Não
Reserva: Muito aconselhável
Preço médio: 30 euros
Cartões: MB, V, D, M, AM

Restaurante A Travessa
Travessa do Convento das Bernardas, 12Bairro da Madragoa - Santos
1200-638 Lisboa
Tel: 21.3902034
Encerra aos domingos e aos almoços de sábado.

in Revista Notícias Sábado - 17 Junho 2006