julho 24, 2006

Outro Rio no meio do Porto

Anteontem, o "Expresso" publicava um artigo sobre "a comunicação" do governo e as novas regras a que a imprensa terá de se sujeitar para lidar com o executivo de Sócrates. Parece que este governo segue, com uns anos de atraso, aquilo que o PS criticava há anos nos tempos de Cavaco - está, portanto, no bom caminho. A regra, segundo o "Expresso", é muito clara quem dirige a informação do governo é o próprio governo e não "a intriga" que geralmente tem as costas largas mas que todos praticam com abundância de recursos e de conhecimentos.

Claro que ninguém é inocente em matéria de intriga política. Mas o governo defende, e bem, o princípio de que só fala do que quer e se vir que é relevante (naturalmente, para a sua propaganda e para o seu bem-estar). Criou-se um hábito, em Portugal, sobre a obrigatoriedade de "falar à imprensa" sempre que "a imprensa" quer que se fale. Trata-se de um hábito deselegante que gera equívocos e que levou a SIC, em tempos, a promover um debate entre dois candidatos sem que um deles tenha aceite participar. É evidente que existe um dever, da parte das entidades públicas, de prestar contas sobre as coisas públicas - precisamente porque são públicas, ou seja, nenhuma actividade pública é assunto privado de quem exerce o poder. Esse é um dos fundamentos da democracia.

O respeito pelo trabalho da imprensa, pela sua inoportunidade e pela sua irreverência, é outro dos fundamentos da democracia. Aconselha-se a quem não tem feitio para suportar o riso público, o cepticismo dos outros, o escrutínio permanente e até a má-fé, que não aceite lugares na coisa pública. Fazer depender toda a avaliação do trabalho público da opinião e do trabalho da imprensa é meio caminho andado para o oportunismo e para o populismo - quando não para o conformismo, como aconteceu durante a era de Guterres. Mas, tentar transformar a imprensa em monstro é um risco que comporta perigos fatais quer para a transparência da República, quer para a própria democracia.

O presidente da Câmara do Porto acha que lhe basta ir a votos de quatro em quatro anos para que o seu trabalho seja avaliado. Pelo meio, o presidente da Câmara do Porto, ou alguém por ele, trata aqueles que são cépticos em relação à sua gestão, ou que o criticam, ou que discordam dele, como inimigos da Câmara do Porto, o que é um abuso extraordinário. Rio tem virtudes bastantes (demonstrou-as ao não ceder à tentação populista) e é provável que a sua administração deixe uma marca positiva na cidade. Mas vamos e venhamos a ideia de que a atribuição de subsídios implica a aceitação de um pacto de silêncio em relação à autarquia, mesmo que sob a explicação da ideia de "civilidade", é absurda e passará a significar, para entidades que aceitem apoios municipais, que estão manietadas no seu direito de opinião sobre a mesma Câmara. Ou seja: para quem está de fora significa que "os subsídios" também servem para comprar o silêncio. Se isso é verdade, trata-se de um abuso de autoridade. A atribuição de dinheiros públicos não supõe que os que estão, transitoriamente, a gerir a coisa pública, sejam proprietários dela.

Rui Rio acha-se vítima da imprensa. Faz mal. Vítimas é o que mais há, e Rio não é, certamente, inocente nem ingénuo. O presidente da Câmara do Porto, ou alguém por ele, devia saber que "a verdade" não tem nada a ver com o ressentimento, que parece animar as suas últimas posições - e que a função da imprensa não é a de transmitir os comunicados do poder. Devia ter aprendido alguma coisa com a inabilidade de Santana Lopes a gerir as relações com a imprensa. Pode ser que, em regimes de excepção, populistas ou ditatoriais, o poder se contente bastante em inventar inimigos externos e em criar azedume. Mas o Porto é uma cidade liberal que não merece essas engenhocas.

Jornal de Notícias - 24 Julho 2006