julho 29, 2006

A vida não é fácil

A Estalagem do Caçador, em Macedo de Cavaleiros, faz parte da história, cheia de aromas domésticos e de evocações dos anos de ouro.

NOS FINAIS dos anos setenta, a Estalagem do Caçador era um lugar perfeito para grandes comoções: jornais estrangeiros sobre as mesas, bebidas fortes, conversas em surdina. Foi lá, salvo erro, que bebi o meu ‘armagnac’, num daqueles Invernos que transforma qualquer um em personagem de romance – sentado à lareira, escolhendo o cálice, folheando o jornal, como numa estalagem em pleno ‘countryside’ inglês. Passada uma década, abandonada a adolescência, descobri os seus quartos maravilhosos. Escrevo ‘maravilhosos’ e não me enganei: colchões altos e acolhedores, luz suave dos candeeiros, ar quente e perfumado de casa campestre, odores que chamam para o pequeno-almoço matinal ou para o jantar – quando vem o final de tarde escuro de Trás-os-Montes, a neblina que atravessa as ruas e nos impede de ver o Café Central, do outro lado da praça, vinda de todas as serras em redor.

Esclareço que a novidade é maior para os forasteiros, naturalmente. Nesses anos, mesmo durante a década de noventa, depois de atravessar a serra de Bornes, depois de nos arrastarmos pelo vale do Douro e de descobrirmos os primeiros castanheiros à medida que se sobe no mapa na direcção do Nordeste, a Estalagem do Caçador era sempre uma promessa para visionários que aceitavam a dádiva do repouso concedida ao viajante, recebido sem ademanes mas com brio e compreensão. Uma década depois (falo já deste século) voltei, também de Inverno, depois de uma viagem entre arvoredos que resistem à desertificação – e ali estava a Estalagem. Encontrei jornais espalhados pela sua sala de estar, encontrei os mesmos sofás acolhedores diante da lareira, os mesmos copos adequados para cada digestivo, as mesmas estampas e gravuras de caça nas paredes, os mesmos tapetes dando cor às salas da estalagem – e, o que é pior para uma alma pouco dada a tormentos espirituais, mas capaz de os reconhecer ao longe, os mesmos aromas à hora certa. Portanto, dai-me uma semana na Estalagem do Caçador, como diria o poeta, e reconstruirei uma parte do mundo.

O restaurante compõe-se de uma sala discreta, decorada com o mesmo estilo do resto da Estalagem (motivos de caça, exuberantes, paisagens transmontanas, discretas, retratos que ficam bem) e de mesas familiares e situadas a distância recomendável umas das outras. E compõe-se disso, também: dos aromas da sopa, caseirissíma, apuradas, aveludadas, cremosas, vindas da horta com a passagem regulamentar por uma cozinha onde se conhece o paladar tradicional: de legumes, variados (rica abóbora, quando a há), de alho francês, de espinafres – ou o creme de marisco, rescendendo. Entradas simples: salmão fumado em fatias generosas, tomate & mozarella, melão com Vinho do Porto, espargos com atum, saladas mistas, omeletes (de gambas, de queijo) e ovos mexidos com presunto (que é muito bom e não é servido em fatias transparentes), antes de passarmos ao polvo à lagareiro, ao bacalhau de cebolada ou às pataniscas do mesmo, ao arroz de tamboril ou aos peixes grelhados (robalo e linguado entre os mais recomendáveis) e, naturalmente, ao desfile de carnes e caça. Enumeremos algumas das imagens desta graciosidade: posta de vitela à Estalagem, medalhões de vitela no espeto, língua de vitela de fricassé, mãozinhas de vitela estufadas ou arroz de pato abrem hostilidades gerais, para que celebremos, com aplauso, o arroz de lebre, o peito de pato com três pimentas e as alheiras da casa – além das tradicionais, transmontanas, a de javali e a de caça. Depois, basta encomendar, a perdiz com castanhas e o cabrito no forno – ambos muito tradicionais e suculentos. O cabrito, aliás, insisto, convém reservá-lo. E tome nota deste aviso da Estalagem: diga o que quer comer, com alguma antecedência, e tudo se fará. Assim é que são cozinhas honradas, que ainda apresentam um pudim de gemas (com amplos benefícios para o nosso amado colesterol), um creme queimado, um pudim de laranja e um arroz doce a abrir a lista de tartes (chocolate, morango e coco, por exemplo). Depois, no sofá, quase se adormece, com uma aguardente de Valle Pradinhos (ou seja, produzida em casa – a família Pinto de Azevedo é a responsável), depois de passear de novo os olhos pela lista dos vinhos Valle Pradinhos disponíveis. A vida não é fácil.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos Tintos: 78
Vinhos Brancos: 29
Portos & Madeiras: 11
Uísques: 24
Aguardentes & Conhaques: 20

Outros dados
Charutos: Sim
Estacionamento: Relativamente fácil
Levar Crianças: Sim
Área Não Fumadores: Não
Reserva: Aconselhável ao fim-de-semana
Preço médio: 25 Euros
Cartões: MB, V, D, M, AM

ESTALAGEM DO CAÇADOR
Lg. Manuel Pinto Azevedo
5340 - 219 Macedo de Cavaleiros
Tel: 278 426 356

in Revista Notícias Sábado – 29 Julho 2006