agosto 07, 2006

Os hipócritas no poder

Parece que uma empresa irlandesa, a Dotcom Directories, publicou na imprensa um anúncio para recrutamento de pessoal, avisando (conta o "Financial Times") que os fumadores poderiam desde logo abster-se de concorrer. Uma eurodeputada trabalhista britânica, Catherine Stihler, questionou a Comissão Europeia acerca da legitimidade dessa restrição. É preciso dizer que a Comissão tem vindo a aprovar e a fazer aprovar pelo Parlamento Europeu um vasto conjunto de leis contra a discriminação com base no sexo, em diferenças étnicas, deficiências físicas, idade, práticas religiosas ou opção sexual de, por exemplo, candidatos ao emprego. A resposta do comissário europeu veio, célere não, eliminar fumadores (mesmo que não fumem no seu local de trabalho, evidentemente) numa candidatura a um emprego, não constitui discriminação. Uma ventania de insanidade percorre, com o seu rasto de hipocrisia, o pessoal de Bruxelas e do poder europeu hoje.

O patrão da Dotcom Directories considera - diz o jornal "Público" de ontem - que "fumar é idiota"; portanto, "os fumadores não têm o nível de inteligência" que ele entende necessário. Evidentemente que qualquer candidato a um emprego na Dotcom Directories poderá mentir; está no seu direito e constitui, mesmo, se for fumador, um dever moral. Não pode ver-se privado dos seus direitos pelo facto de, ao fim da tarde, no intervalo de almoço ou na sua vida privada, decidir fumar um cigarro ou um charuto. Portanto, vê-se na obrigação de mentir. Nenhum patrão, nenhum director, ninguém, tem a ver com o facto de, fora das horas de trabalho ou do horário social (em que existem regras de comportamento expressamente definidas), um cidadão poder fumar a sua cigarrilha. Que os hipócritas e tarados de Bruxelas aceitem vedar o emprego a um cidadão por ele fumar fora do local de trabalho, é a confirmação da insanidade.

O mundo está, inegavelmente, mais perigoso e idiota. Toda a gente quer meter-se na vida privada dos outros e as leis anti-tabaco, que me merecem toda a compreensão, são uma das guardas avançadas desse espírito persecutório que começa a crescer à nossa volta.

Evidentemente que estou de acordo com o princípio que preside às leis anti-tabaco. E defendo que não se deve poder fumar no interior de edifícios públicos. O projecto de lei português, que devia ser revisto por um psicanalista e um grupo de psicólogos (tais são a sanha persecutória e o radicalismo da sua proposta que vai banir o fumo dos restaurante e bares) é um desses casos de ditadura e de agressão cívica.

Conto-lhes uma história há uns anos, em Nova Iorque, no final de um seminário que ocupou cinco dias de trabalho, houve um jantar comemorativo. A comida era banal mas era festa. No final, enfiados em fatos de cerimónia e "smokings" (outra palavra que vai sair do nosso vocabulário), cinco almas mediterrânicas e mais uma dezena de americanos, rondávamos pelas salas do edifício em busca de uma sala para acender os nossos charutos. Nada. Até que um cidadão, solícito, veio buscar-nos e nos levou para uma sala onde havia, sobre uma mesa de vidro, alguns fios de cocaína que se destinavam aos convidados. Não recusei escandalizado; mas recusei (até hoje, aliás). Os meus pares fizeram o mesmo - mas um de nós disse: "Ah, isso não queremos, obrigado, mas se pudéssemos acender um charuto em algum lugar" O homenzinho recuou, como se tivesse visto o velho Satã: "Ah, fumar é proibido."

A seguir, quem tiver colesterol alto, pneu na barriga, ou gostar de feijoada, pode começar a temer pelo seu emprego a Comissão Europeia, tal como o desejo de Hitler, quer um homem novo, totalmente novo, higienizado e inodoro. E já estão no poder, os pequenos fascistas.

Jornal de Notícias - 7 Agosto 2006