setembro 03, 2006

Cidades: (1) Porto Alegre


Uma das minhas casas seria na República, esse bairro central de Porto Alegre. Não de noite, povoada pelas faunas da cidade baixa, vagabundos, maus estudantes da UFRGS, loiras que durante o dia trabalham nas repar­tições, esquerdistas sem nostalgia, vicia­dos em cinema, fumadores de baseado, professores universitários que arregi­mentam alunas românticas, todos os géneros e categorias políticas de bebe­dores. Há também os esfomeados da sopa do bar de esquina, o Van Gogh, deputados municipais, gente que frequenta reuniões literárias, comenta­dores de futebol, caminhantes sem destino, bêbedos educados, boémios que contam a história da cidade, advogados cansados, mulheres bonitas, músicos de bares das redondezas, actores desempregados, desempregados que actuam como se não o fossem, agitadores, ven­dedores de cachorros quentes, adoles­centes de vestidos muito decotados, gente de todas as religiões gaúchas, ter­túlias nas esplanadas.

Desculpem as frases longas. Ao longo da minha vida escrevi muitas reportagens sobre lugares, cidades, viagens e países. Muitos desses lugares eram tão belos que os abandonava ligeiramente incomodado, entre eufórico e incomo­dado. Praias gentis protegidas por des­filadeiros, ilhas onde pequenos hotéis construídos em madeira aguardavam luas-de-mel. Cidades cheias de palácios, de ruas onde a História ameaçava o passeante. Países cheios de arte e de glória, bairros habitados por escritores de há trezentos anos, de quando havia literatura. Recebi cartas de leitores incomodados, como eu, por essa beleza incólume e comovente, ou elogios de viajantes fascinados. Sempre expliquei que a vantagem não era minha, mas desses lugares sobre os quais, na verda­de, eu devia calar-me para os descrever melhor. Nunca me propuseram escrever sobre Porto Alegre, a cidade mais sem regras que já conheci. Mas eu tinha de escrever sobre Porto Alegre.

Explico. As cidades europeias têm regras – algumas, inclusive, severas de mais. Ou acerca do trânsito, ou sobre a arquitectura e a sua preservação, ou sobre a proibição de fumar. Outras, como Salvador, na Bahia, parece não terem regras - mas elas estão lá: a cidade dos negros, a cidade dos orixás, a cidade dos baianos brancos, a cidade religiosa. Ou Buenos Aires, onde há uma certa anar­quia, sim, mas onde existe uma ordem monumental e uma tradição de bairro. Mas Porto Alegre é uma cidade que vive sobre o risco e vive em risco. Plantada diante do Guaíba, o rio que parece o mar (e que tem o seu poeta, Mário Quintana), Porto Alegre é uma cidade europeia como os europeus imaginam que devia ser uma cidade europeia: de­corada de cafés, de livrarias, de merca­dos de rua, de árvores em todas as ruas, de bairros que vivem na penumbra de jardins semiencobertos, que tanto mos­tra o seu chique antigo em Moinhos de Vento, como o júbilo popular nas ala­medas floridas e arborizadas do Brique da Redenção, onde ao fim-de-semana se passeia de chimarrão na mão, to­mando o mate e apanhando sol. Há restaurantes para fumadores e restau­rantes para não-fumadores. Esplanadas debaixo dos jacarandás da Alfândega e sotaques espanhóis no Mercado Pú­blico, onde se concentra a maior quan­tidade de lojas de boa comida do he­misfério sul - e onde, ao lado do restau­rante Gambrinus, existe o bar Naval para (de acordo com o menu afixado à porta) comer «o violento mocotó» ou a «terrível feijoada». Nesse complexo de ruas, entre a Voluntários da Pátria e a Floriano, a alma popular da cidade floresce como um dos grandes destinos a conhecer.

E Porto Alegre é uma das minhas cidades.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Setembro 2006