outubro 30, 2006

A força habitual do destino

De repente cá estamos: o próximo congresso do Partido Socialista corresponderá à canonização de José Sócrates no governo. Não vale a pena erguer a voz com escândalo e escarninho. Episódios semelhantes ocorreram na história recente, com Cavaco e com Guterres - e significam antes de mais a genuína alegria pela manutenção do poder. Quando se chega a uma circunstância destas, há quem compreenda que a natureza dos ciclos políticos tem qualquer coisa de repetitivo e de trágico; repetitivo porque os factos não podem negar-se, trágico porque não dependem da vontade dos actores mas sobretudo das circunstâncias.

Tirando Manuel Alegre, que cada vez tem menos a ver com este PS desde que afrontou as indicações do partido para as presidenciais, ninguém está em condições de pôr em causa o abençoado ganha-pão do poder. Mesmo com Manuel Alegre, estamos para ver. Mas é nestas alturas que se observa sempre o mesmo fenómeno quanto mais o partido se aproxima do governo, venerando-o e aproveitando a onda, mais o governo se afasta do partido, que constitui quase um empecilho com as suas exigências, as suas discussões e as suas tendências. Foi assim com Cavaco, cansado de um PSD enredado na malha dos seus baronatos; foi assim com Guterres, cansado das disputas por cargos e do "pântano" que ele reconhecia melhor em sua própria casa. Com Sócrates e com este congresso que se aproxima, disciplinado antecipadamente pela eleição pacífica do líder, ainda é cedo para baronatos e para pântanos. Mas, salvo erro, estamos a meio do ciclo; e, na verdade, Sócrates tem uma vantagem sobre Guterres - não só não precisou da rábula do "no jobs for the boys" (escolheu quem quis, porque tinha o mandato, a maioria e o partido penhorado) como teve a sorte de se livrar da tralha soarista sem ter de se esforçar ou de sofrer o desgaste. Aliás, Sócrates não desceu um único ponto depois da derrota de Soares nas presidenciais. Pelo contrário, a sua influência cresceu.

Uma das novidades neste "debate" acerca da relação entre o governo de Sócrates e o PS tem a ver com o desaparecimento gradual do partido propriamente dito - tanto o artigo do "Expresso" em que Sócrates anunciava que ia ser líder, como a eleição deste fim de semana, como o processo que levará à aclamação em congresso, são etapas pacíficas da sua canonização. Nada de estranhar. O partido não se manifestará contra Sócrates enquanto as sondagens oferecerem o espectáculo da sua inevitabilidade e a imprensa (com destaque para as televisões) retransmitir a imagem dos sucessos do governo - mesmo que se tratem de êxitos não confirmados. O poder tem um preço claro e, tal como o desgaste arrasta consigo mais desgaste, também os razoáveis resultados nas sondagens ajudam a manter as hostes em disciplina.

Há nisto uma espécie de "força do destino" o PS de Sócrates aproxima-se cada vez mais do PSD de Cavaco nos anos de ouro da sua maioria absoluta. O ruído da rua dificilmente se fará escutar tão alto. A imprensa, que elegeu Cavaco como alvo a abater, e que apenas suportou Guterres até aos primeiros sinais de erosão, tem agora redacções mais jovens e conformadas com a "força do destino".

Marques Mendes parece ter compreendido desde o início essa ideia dos ciclos. Contra todas as expectativas, resistiu ao ataque dos baronatos e dos ilustres do seu partido. Mais uns meses e ele estará preparado para pedir contas a Sócrates. Também Marques Mendes precisa de um congresso pacífico do PS.

in Jornal de Notícias - 30 Outubro 2006