outubro 23, 2006

José Socrates e a rua socialista

Jorge Sampaio tinha razão (por razões que desconhecia, como habitualmente), mesmo com o seu ar queixoso há vida para lá do défice. Ele existe, está lá, omnipresente como o fantasma dos últimos anos da política portuguesa. Tem servido para disciplinar as contas públicas e para limitar o desperdício do Estado (que é bastante) - e tem justificado quase tudo o que o governo quer justificar.

Todos os que alguma vez tomaram contacto com a máquina do Estado e da administração pública conhecem o défice. Habituámo-nos à sua presença. Os socialistas, que foram tão determinados a bombardear Manuela Ferreira Leite pela "obsessão do défice", deveriam ser periodicamente confrontados com as suas afirmações da época e com os gorjeios que na altura soltaram a propósito do mesmíssimo défice que agora combatem. Daí que, como se sabe, exista vida para além do défice - vamos sobrevivendo, equilibrando, aguentando. De contrário a vida seria mais absurda do que já é.

Numa coisa Sócrates se distingue dos seus antecessores foi mais longe do que eles, foi mais corajoso. As circunstâncias ajudaram; não prometeu reformas, mas fez mexidas; não anunciou o paraíso, não é culpado do inferno. Teve o favor de uma maioria absoluta que ultrapassou largamente a votação normal do PS (o que joga a favor de Sócrates e dos eleitores, que não são parvos). Teve o favor da imprensa e, até agora, de uma parte da rua socialista. E tem a seu favor os mistérios da boa imagem. Ele sabia que as greves e os protestos se levantariam contra o seu governo, e estava preparado; mas, ao contrário da imprensa da época, que se associou à rua para identificar Cavaco com o monstro, Sócrates continua com uma imprensa aceitável e maneirinha, apesar das gafes nada despiciendas dos seus ajudantes.

Se Guterres governava "em diálogo" com um olho nas sondagens, Sócrates governa sem diálogo, mas com a certeza de que isso traz benefícios e de que a maioria absoluta se mantém até ao fim da legislatura. Não sem alguns reparos estratégicos a ministra da Educação parece ter amenizado o tom do seu discurso (o que é um erro - porque depois dos sindicatos, o principal inimigo do ensino está no seu ministério); o ministro da Economia, sob o pretexto de vir em defesa do governo depois das desastradas e imorais declarações de um secretário de Estado, veio salvar as tarifas da electricidade. E não faltam vozes (geralmente vindas do lado do soarismo) que chamam a atenção para a necessidade de prestar atenção à rua, quer no caso das manifestações dos professores, quer nos ajuntamentos sindicais, quer nos protestos pontuais em cada aparição de Sócrates na rua.

Sócrates e a rua não fazem parte da mesma família política. A rua socialista, pândega e contemporizadora, não gosta dele. A rua esquerdista, por obrigação, odeia-o. Ele também não morre de amores por nenhuma delas à socialista, acha-a desmiolada; à esquerdista, que mistura os comunistas, os sindicatos e o bloquismo, acha-a despropositada para o país com que sempre sonhou e com poucas qualidades para pertencer ao país que gostaria de deixar, cheio de tecnologia, bons índices na educação e boas maneiras na cultura. Esse é um dos conflitos essenciais de Sócrates com o país real. E, se já se livrou do soarismo e das suas heranças, os próximos tempos serão de insistência: o aborto para agradar à esquerda, o combate ao défice para desarmar a direita, e por aí adiante. É uma boa estratégia. Tem é o perigo e a desvantagem de se topar à distância.

in Jornal de Notícias - 23 Outubro 2006