outubro 14, 2006

Visitando o mito

Em Lisboa, servindo-se de muita literatura e da memória, o cronista visitou o Tavares, o restaurante mais antigo do País. E gostou.

No ano anterior à abertura do restaurante, 1783, nascia Stendhal; nesse ano morria Diderot, no ano seguinte ca­savam o senhor D. João VI de Portugal com Dona Carlota Joaquina de Bourbon e começava a publicar-se o 'Ti­mes', de Londres. Só em 1861, no entanto, o aspecto da sala de jantar se alterou e se aproximou daquilo que é ho­je: candelabros, dourados, espelhos, tectos trabalhados. Não era o 'Times' que João da Ega lia no restaurante ao al­moço de certa manhã – pelas nove horas –, mas sim a 'Gazeta Ilustrada'. O resto da história, vem n’ 'Os Maias', naturalmente, mas transcrevo a ementa do dia: "O bife era excelente - e depois de uma perdiz fria, de um pouco de doce de ananás, de um café forte, Ega sentiu adelga­çar-se enfim aquele negrume que desde a véspera lhe pe­sava na alma. [...] O relógio do café deu dez horas." O parágrafo, para lhes mostrar o lugar onde estamos, começa assim: "No Tavares, ainda solitário àquela hora, um mo­ço areava o sobrado." Precisamente, o Café Tavares – o mítico restaurante de Lisboa, na Rua da Misericórdia, o celebrado Tavares, que, depois de uma prolongada histó­ria de convívio com outros mitos residentes, abre as suas portas para uma cozinha de eleição, rejuvenescida e, con­fesso, cuidada, sob a direcção de Philippe Peudenier.

E que mitos residentes são esses? Bastantes: os mitos do poder, da glória, da conspiração, do cinema, da litera­tura e da política. Muitos deles passaram por lá. Fran­cisco Sá Carneiro gostava de almoçar (perdiz) no Tava­res. Por lá passaram Eça, Ramalho, Oliveira Martins, Bulhão Pato, e depois Almada, e depois Eisenhower, também Calouste Gulbenkian, naturalmente, o exaltante Juscelino Kubitschek, o discreto Fellini, o sem ad­jectivos à altura Cary Grant, e também Madonna - a que tenta cantar. O Tavares foi o palco da Lisboa chi­que e invejada; é o mais antigo restaurante português e o segundo da Península e hoje um restaurante atraen­te, muito mais juvenil e disponível, mas sempre no
mesmo lugar, na Rua da Misericórdia, entre o Chiado e o Bairro Alto. E promete.

Um destes dias cedi à tentação, anos depois da minha es­treia no Tavares Restaurante Gastronómico (em breve vos falarei do Café propriamente dito que funciona ao lado, no primeiro andar), e o regresso, se posso dizê-lo assim, não só correu bem como surpreendeu confortavelmente, quer pela cozinha bem-humorada e saborosa de Philippe Peudenier, quer pela atenção do escanção Arlindo Madeira. Consulta à lista: 'foie gras' de pato, em 'raviolis', num 'consome', 'shitake' e cebolinho; guacamole com camarão tigre salteado e sua guarnição, bacalhau em duas cozeduras, com açorda, azeite de azeitonas pretas se­cas e 'coulis' de pimento vermelho; filete de robalo com 'risotto' de feijão-preto e couve terminando numa redu­ção de lavagante; filete de peixe-galo à 'meuniére', com legumes 'caponatta' e marmelada de limão confitado; medalhões de lavagante grelhados com creme de milho; lombo de novilho laçado com soja, ‘bock choy’ e batatas fritas americanas; carne de porco (preto) à alentejana; e ainda o supremo de pato no forno com cuscuz e molho de cominho e hortelã.

Além da escolha pela carta, há dois menus de degustação, um deles denominado Grande Degustação (e com justiça), a 85 euros - o de degustação "normal" fica por 65 euros. Optámos por este último e satisfez muito bem: o bacalhau estava perfeito, a açorda tinha um subtil toque de limão; o novilho laçado foi uma boa opção com a couvinha chinesa e as batatas fritas com pele e embrulhadas numa tira de papel de jornal; como entrada veio para a mesa uma sublime espetada de cama­rão em rolinho de ‘kadaïf’, mini-alho-francês e molho agridoce, mas a opção podia ter recaído num "carpaccio" de beterraba, parmesão, chouriço, limão e rúcola. Na so­bremesa, optámos por um gelado numa sopa morna de chocolate, crocante de avelã, gelado e 'cappuccino' de amêndoa com coco laminado que acompanhámos com um 'tawny' Niepoort.

O meu conselho é básico: jantar no Tavares pode ser um acontecimento, entre aquelas paredes belíssimas e respirando história. Ao contrário do que se pensa, podemos ir sem gravata, podemos respirar, podemos saborear boa comida e desfrutar de uma garrafeira su­perlativa. E arrumam o carro gratuitamente, o que é uma vantagem na zona.


À LUPA
Carta de vinhos: * * * * *
Carta de digestivos: * * * *
Facilidade de acesso: * * *
Decoração: * * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 250
Vinhos brancos: 70
Vinhos verdes: 8
Portos & Madeiras: 50
Uísques: 30
Aguardentes & conhaques: 12
Champanhes & espumantes: 15

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: parque nas proximidades
Adequado levar crianças: não
Área de não-fumadores: não
Reserva: indispensável ao jantar
Preço médio: 70 euros

RESTAURANTE TAVARES
R. da Misericórdia. 35/37
1200-270 Lisboa
Tel: 213421 112 - 213470906
Encerra à segunda-feira

in Revista Noticias Sábado – 14 Outubro 2006