novembro 06, 2006

O estado de graça

O dr. Medina Carreira, no "Expresso" (já o tinha dito na SIC), diz que as medidas do governo na área da saúde, por exemplo, não são decisivas. Por outras palavras. Percebe-se o que quer dizer que o tom geral de crueldade e de frieza não transportará consigo grandes benefícios para as políticas gerais do governo se não forem acompanhadas de medidas de fundo e do que, para sermos corriqueiros, se chama "reforma das mentalidades" - a começar pela traquibérnia em que continua a andar o sistema educativo. Retiro estas ilações da sua participação de um painel de economistas e empresários que o jornal reúne periodicamente para avaliar a situação económica. Alguns dos participantes neste conselho de sábios do "Expresso" mencionam, por seu lado, que o governo deve adoptar as medidas que entende para corrigir o estado das contas públicas "sem descurar o social". A milhares de quilómetros de Lisboa, ouvi o mesmo este fim-de-semana, numa discussão sobre "o estado das coisas": que o governo pode fazer o que entender na economia & nas finanças mas não pode "ignorar o social". O dr. João Soares irá ao congresso do Partido Socialista depois de os jornais publicarem um seu tão inaudito manifesto "contra o neo-liberalismo" - e, portanto, pelo "regresso do social".

A curiosidade do manifesto de João Soares, que passaria por ser uma espécie de moção ao congresso do PS, é que o seu principal subscritor acha que o congresso não vai perder-se a discutir o assunto porque será uma cerimónia de entronização do líder, José Sócrates. O congresso não pode perder-se em ninharias nem em debates ideológicos, que fariam desmobilizar a participação das massas que, para nos restringirmos ao próprio congresso, apoiam energicamente o primeiro-ministro.

Isso eu não entendo. Tirando Medina Carreira, que acha que grande parte do fogo de artifício é apenas fogo de artifício, todos manifestam o seu grande amor "pelo social" - sendo que a grande, larga, vasta maioria dos comentadores, não abdica de exigir o cumprimento das metas que permitiriam ao governo controlar as contas públicas (mesmo que o governo se engane nos números da inflação, como parece acontecer com oito miseráveis mas inoportunas décimas). Imagine-se o que não diria Jorge Sampaio, juntando-se ao coro, sobre a vida que existe para lá do défice.

Alguns dos nossos cérebros gostariam de equilibrar o país e as suas contas - mas não lhes agrada a rua nem a mobilização dos sindicatos ou das corporações. Por isso, aplaudem ambas as coisas e decretaram a morte política de Sócrates, que é a última moda em matéria de citações na imprensa. Pessoalmente, acho que as notícias sobre a morte política de Sócrates também foram muito exageradas.

2. Sem perder de vista este cenário de esquizofrenia e de grande dedicação "ao social" a par de um iniludível e desesperado amor pelas contas públicas (ou ao contrário), e sem mencionar o "monstro do neo-liberalismo", periodicamente agitado sem sentido, a situação é compreensível e recomendo que se leia (foi publicada na edição de sábado deste jornal) a entrevista de José Pacheco Pereira, onde se menciona o essencial. Primeiro, que muitas das coisas que o governo de Sócrates fez neste ano e meio, o PSD já devia ter feito (e não fez, com medo da rua e das corporações); segundo, que o PSD, ou seja, a oposição, necessita de apresentar interlocutores credíveis para criticar o governo. E, lamentavelmente, vozes dessas não abundam no PSD.

in Jornal de Notícias - 6 Novembro 2006