dezembro 11, 2006

Ser de esquerda porque sim

O primeiro-ministro definiu o que é ser de esquerda. É, antes de mais, dizer-se de esquerda, afirmar-se de esquerda e tentar passar a ideia de que as suas propostas políticas são de esquerda.

Não é novidade tamanha profissão de fé. Lembra o que aconteceu depois da queda do muro de Berlim e do fim da União Soviética o que tinha caído não era o socialismo, não era a utopia socialista - apenas uma perversão da ideia genial que tinha conduzido ao "gulag", ao empobrecimento e aos milhões de mortos de Estaline. De cada vez que uma ideia falha, aparece sempre alguém dizendo que não foi a ideia, em si mesma, que falhou, mas a sua expressão "no domínio do real". O problema é que, entretanto, a ideia ficou contaminada pela memória. Mas é apenas um pormenor.

Na verdade, todas as utopias - de Campanella a More, de Calvino a Marx, de Rousseau a Lenine - contêm, em si mesmas, o gérmen da desgraça e os princípios do autoritarismo ou da loucura totalitária. Basta ler bem os textos e analisar, mesmo superficialmente, a história da sua realização. Sucessivamente, as mais negras etapas de realização das utopias são, ou ocultadas ou negadas com artifício o Terror, na Revolução Francesa, não tinha a ver com a Revolução Francesa; o extermínio dos camponeses e dos desafectos de Estaline, na URSS, não tinha a ver com o socialismo; os milhões de cadáveres deixados por Mao na sua cruzada da Revolução Cultural não devem fazer esquecer o génio que a ordenou; e assim sucessivamente.

Se passarmos para "o outro lado da barricada", seria como se absolvêssemos Augusto Pinochet dos crimes que certamente cometeu e da corrupção que permitiu, porque lançou as bases de uma economia moderna no Chile.

Simplesmente, José Sócrates é insuspeito de simpatias pelo autoritarismo de esquerda - dessa herança ficou sobretudo "a vontade de nos fazer bem", de qualquer modo mitigada pela boa consciência liberal do primeiro-ministro. O congresso que reuniu no Porto uma parte do "socialismo europeu", além do "amigo americano" (e da bela Ségolène Royale, que com Sócrates constitui o par ideal dessa Europa que se livra da penumbra) serviu para mostrar aos portugueses que existe uma ideia de esquerda que não ruiu. E qual é essa ideia? Salvo erro, a ideia é ser de esquerda. Preto no branco.

De tudo o que aconteceu no congresso floresceu sobretudo a ideia do "modelo social europeu" como coroa de glória da "generosidade europeia" e da "fraternidade das nações". Também aqui estamos todos de acordo é necessário repensar "o modelo", que, recorde-se, vive permanentemente atrapalhado com as armadilhas da vida real e das contas dos Estados e dos seus défices. Sobretudo quando se verifica que a Europa quer um "modelo social" para uso próprio, mas está indisponível para pagá-lo com honradez e honestidade. Trata-se apenas de "boa consciência".

Confrontado com a realidade, José Sócrates é de esquerda metade da semana; e faz desvios de direita quando os contabilistas o assaltam. Assim, também eu. A única diferença é que o primeiro-ministro se sente na obrigação de insistir em que é de esquerda porque se define a si mesmo como "de esquerda".

2. O Ministério da Educação, que - se tivesse juízo - devia suspender os trabalhos da famigerada TLEBS, prepara-se para, segundo o semanário "Expresso", exigir aos professores que tenham uma "boa expressão oral e escrita do Português". Não se trata de uma exigência, bem vistas as coisas, mas de uma evidência não se compreende que um professor use deficientemente a sua língua. Mas enfim. Para isso, o Ministério devia arrumar a própria casa. Pode começar por vigiar muitos dos manuais que são distribuídos anualmente pelas escolas e, para variar, verificar a ortografia e a sintaxe dos seus técnicos superiores. E lançar o debate sobre o ensino do Português.

in Jornal de Notícias - 11 Dezembro 2006