fevereiro 19, 2007

O PSD diante do seu deserto

Sou um distraído e não sabia que José Miguel Júdice ainda valorizava a sua condição de militante do PSD. Os argumentos de Júdice, que abandonou o partido, sendo pessoais e sérios podem, simultaneamente, parecer ingénuos para o frequentador da política. Mas ninguém pode duvidar da sinceridade deles.

Evidentemente que as pessoas mudam; provavelmente J.M. Júdice mudou e o PSD não é o partido onde ele caiba, se é que as pessoas têm de caber em algum partido. Júdice considera que o PSD é, hoje, um partido “muito mais conservador do que há vinte anos”, quando Portugal acabava de entrar na União Europeia e Cavaco era primeiro-ministro. Há decerto algum simbolismo na saída de J.M. Júdice do partido que ajudou a criar, mas não sei se é aquele que o próprio lhe atribui – na verdade, o PSD está actualmente a rever o seu programa e existe uma comissão onde se encontram ou se encontravam os nomes de Manuela Ferreira Leite, Alexandre Relvas, José Pacheco Pereira ou David Justino.

Por isso mesmo é importante uma afirmação de Júdice que me parece importante: “O PSD mudou muito de natureza e não consegue captar para o seu seio os dinamizadores ideológicos porque não tem nada para eles.” Tenho insistido nesse ponto desde a vitória de José Sócrates, não porque o PSD seja obrigado a rever os seus princípios em função de ciclos eleitorais ou porque eu seja parte interessada no assunto, uma vez que não sou “eleitor pertinente” do PSD. Na verdade, o vazio do PSD constitui um assunto interessante do ponto de vista sociológico e um dos exemplos da repulsa que a direita portuguesa tem pelo seu tempo e que pode transformar-se em medo do seu tempo.

Não vale a pena fazer a história do partido para perceber que matérias como o debate intelectual, a interrogação à sociedade e ao que ela pensará do futuro têm sido cuidadosa e habilmente mantidas fora das preocupações do PSD. Vamos e venhamos, o PSD pode ter uma política de emigração, uma política para o ensino superior, uma estratégia para o crescimento económico, uma política para as cidades – o problema é que não tem ideias sobre esses assuntos. São coisas diferentes. Durante todo este tempo, a direita portuguesa investiu muito mais no “alinhamento dos jornais e telejornais” para controlar “a esquerda das redacções” ou a filiação esquerdista do “sector intelectual”, do que na libertação dos seus horrores históricos ao debate, à política ou às formas culturais contemporâneas. Um dos absurdos que daí resulta é a célebre designação de muitos eleitores como “culturalmente de esquerda” e “politicamente de direita”, por exemplo. O que significa isso? Rigorosamente nada.

Os dirigentes históricos do PSD, um partido que nasceu flutuante, pós-marcelista, alimentado pelas classes médias receosas da “bancarrota”, do comunismo e do desvario das contas do Estado (muito embora alimentadas por elas), pensaram que para prolongar a vida do partido lhes bastava promover a rapaziada da “jota” (sempiternos candidatos a um cargo político de baixa ou média dimensão, consoante soubessem vestir-se), agitar com algum efeito os temas morais do passado e falar de economia. Como se vê, os efeitos não se fizeram esperar.

A saída de J.M. Júdice do partido constitui, no entanto, um duro golpe desferido contra a imagem de José Sócrates como dirigente de esquerda. Visto à distância, Júdice diz mais ou menos isto: não vale a pena estar no partido, uma vez que José Sócrates ocupou o espaço do PSD. Na verdade, o que o PS de Sócrates ocupou, e bem, não foi o espaço político do PSD mas sim o deserto que o PSD deixou criar à sua volta ou até no seu interior. Nada que não mereça.

in Jornal de Notícias – 19 Fevereiro 2007

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