março 31, 2007

Perfumes do Nepal

Em Lisboa, o Himchuli propõe, na sua simplicidade, uma viagem suave até ao Nepal.

De entre as interrogações que se colocam aos viajantes que refazem as principais rotas por onde passaram aventureiros, mercadores, solitários, vagabundos religiosos, geógrafos destemidos, há uma essencial: por que razão aquele pedaço de montanhas, colinas e fragmentos de céu entre a Índia e a China, fascinou e fascina tanta gente? Está claro que há Katmandu, está claro que há gente que vai para espiolhar a presença de viajantes do passado. Na verdade, Katmandu, com a sua altitude, a sua cor, além dos seus sons e, sobretudo, da sua aparente inacessibilidade, é uma metáfora perfeita para o espírito dos anos sessenta. Não falemos dos fumos. A mitologia hippie transformou Katmandu num lugar de referência – mas, salvo erro, não trouxe de lá grande gastronomia. O pessoal comia mal, nesses anos de Woodstock.

Da época, retiro o espírito e as primeiras canções de Van Morrison (ainda hoje gosto de ouvir “Tupelo Honey” e acho que é também por causa de “Old Old Woodstock”), os sons de CSN & Y, ou de Jimi Hendrix, para não irmos mais longe, a Arlo Guthrie e Country Joe McDonald ou John B. Sebastian. Parem-me por aqui, que eu poderia falar do Nepal por várias páginas. Mas, desta vez, falo-vos do Nepal em Lisboa, ali bem perto da Infante Santo, na Rua do Sacramento (que depois de atravessar a Infante Santo se chama Presidente Arriaga e, depois, Janelas Verdes). Durante o dia, é um lugar complicado, barulhento (eu já vivi lá e sei do que falo) e poeirento; à noite, é um pequeno pedaço tranquilo de Lisboa – e é nessa altura que vale a pena ir ao Himchuli, entrando pela sua porta discreta e preparados para comer as chamuças de frango ou de legumes, os pastéis de cebola ou de queijo frito com farinha de grão e uma excelente sopa de lentilhas (podemos tentar, também, a sopa de espinafres secos e bambu), antes de perguntar como são as lentilhas com natas azedas ou – para temperamentos completamente vegetarianos – as beringelas grelhadas em carvão ou o simples e suave caril de legumes com frutos secos.

Da última vez comi “tarcari sigada” (chamuça de legumes) e saudei o meu pãozinho nas tacinhas de pimentas locais. Depois, entrei na ementa: o frango com caril e cogumelos tentou-me, mas retrocedi a tempo e escolhi um frango grelhado no carvão e provei ainda um borrego com lentilhas, muito saboroso – recomendo vivamente, tal como o que vem com cajus ou com espinafres secos.

De resto, a ementa, variadíssima, e com cerca de quarenta pratos, desde o caril de batata com espinafres ao caril de queijo e natas, caril de queijo com espinafres ou o camarão com cebola, pimentos e tomate ou ao frango com côco e natas, sem mencionar as sinfonias de pratos à base de arroz ou que têm o arroz no centro de atenções.
Algumas das propostas são picantes, densamente picantes; os grelhados são simples; os molhos são suaves ou, então, informando-nos previamente, podemos escolher os mais aguerridos e apimentados, sabendo de antemão que as sobremesas contam com um doce de manga que aplacará os demónios gustativos, ou com um pudim de natas com caju e frutos silvestres, quase “de fusão”.

Não há grande lista de vinhos, mas já se sabe: estamos numa dependência do Nepal, o que nos deve confortar por minutos, antes de sermos devolvidos para a doçura da Rua do Sacramento àquela hora tardia, ou de nos encaminharmos até às Janelas Verdes, para – no majestoso jardim sobre as velhas docas – respirarmos o ar da noite. Levamos nas papilas uma recordação, uma espécie de vaga que se sobrepõe a outra, de lembrança misericordiosa de como (aproximadamente) é a comida naquelas paragens, lá no alto das montanhas do Nepal. Um misto de iogurte fresco e de grãos de legumes secos. Pouca carne. Pouca sustância. Poucas cousas que lembrem a agressividade do mundo. E perfumes, sim, perfumes. Falemos dos perfumes. Das ervas, do Nepal que nos há-de merecer – assim possamos viajar à mesa do restaurante. Às vezes, devemos tentar-nos.

À lupa
Carta de vinhos: *
Carta de digestivos: * *
Facilidade de acesso: * * * *
Decoração: * * *
Serviço à mesa: * *
Acolhimento: * * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos brancos: 19
Vinhos tintos: 28
Portos e Madeiras: 4
Uísques: 8
Aguardentes e conhaques: 8

Outros dados
Charutos: não
Take away: sim
Estacionamento: difícil na zona
Adequado levar crianças: sim
Tem área de não-fumadores: não
Reserva: aconselhável
Preço médio: 15 euros

Restaurante HIMCHULI
Rua do Sacramento a Alcântara 11/13
1350-278 Lisboa
Tel: 21 390 17 22
Encerra domingos e sábados ao almoço.

in Revista Notícias Sábado – 31 Março 2007

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Depois disto, as finais aproximam-se

1. Jesualdo Ferreira mostrou-se decidido pela primeira vez neste campeonato; pela primeira vez neste campeonato, o treinador do FC Porto foi claro em relação ao resultado: só há um possível, a vitória. Curiosamente, à mesma hora (um pouco mais cedo, concedo), Fernando Santos excedia-se; ele, que é tão moderado, acredita piamente na vitória. Vai ser um jogão numa Luz incendiada de vermelho. "Respeitinho é que é preciso", dizem-me. Lamento desiludir: nada disso. Se é para haver respeitinho, mais vale não jogarem. Quero um jogo como deve ser. Ou sem golos, mas bem disputado. Ou com golos, mas sem casos. De resto, a travessia decisiva do campeonato vem depois deste jogo.

2. Já escrevi isto, mas repito: que seja um jogo leal, francamente leal. Espero, por isso, que Anderson regresse ao relvado e faça uma boa dupla. E que olhe, por cima, sobre Katsouranis. Era bonito.

3. Mas quase apostaria que o jogo vai passar por Petit, Simão e Nuno Gomes, de um lado; por Quaresma, Lucho e Raul Meireles, do outro (ainda não se sabe se Lisandro e Anderson comparecem). Quase. Porque num Benfica-FC Porto não há jogadores decisivos à partida. É o que vale. Eu, por mim, também espero que Bosingwa possa jogar, mas isso é um pormenor.

4. Fernando Santos diz que não vai prestar atenção especial a Quaresma. Mas a culpa não é dele; é do jornalista que lhe fez a pergunta. É como se fosse perguntar a Jesualdo se teria especiais cuidados com Simão. O problema dos treinadores, nestes jogos, é que têm de pôr à prova a sua capacidade de abstracção, acreditando num modelo de jogo, num esquema, e nas competências do adversário. Nem sempre é fácil, mas se se lembrarem de Mourinho sabe-se do que falo. Ele imaginou, daquela vez (o último jogo no velho estádio da Luz) que Sokota ia entrar depois do golo de Deco. Vai ser um jogo de treinadores encarniçados. Muito táctico sim, mas só a princípio.

5. A imprensa delirou com a contratação de Fábio Coentrão pelo Benfica. Upa. Foi uma grande notícia, um alento considerável, a grande contratação da época. Ena. Upa, upa. Ao pé disso, a improvável ida de Cristiano para o Real é quase nada. O contrário seria, digamos, Ronaldinho Gaúcho assinar pelo Desportivo das Aves.

6. Depois do jogo contra os belgas, onde Cristiano Ronaldo e Quaresma enfeitiçaram aquela armada frouxa vinda de Bruxelas, esperava isto – um jogo com a Sérvia para recuperar o manual scolariniano. E o que diz ele? Isto: nada de ousadia, nada de encantamentos, vamos ser realistas. Esses treinadores dão-nos alegrias no fim, mas deixam-nos à beira de um ataque de nervos de jogo para jogo, como se a nossa obrigação fosse confiar. Está bem que travámos os sérvios, que tiveram o seu momento de ouro; mas foi Scolari do mais puro. Resultado? Subimos ao segundo lugar na tabela. Querem coisa mais irritante?

in Topo Norte - Jornal de Notícias - 31 Março 2007

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março 26, 2007

Portugueses sem compromisso

Este jornal publicou na sua edição de ontem uma interessante peça sobre o voto dos deputados numa hipotética eleição dos “grandes portugueses”. Escreve a repórter que “não responder foi a forma hábil e prudente de a maioria dos deputados evitar entrar em polémicas” – ou, então, eleger o “povo português” – se bem que a lista dos dez figurantes na final televisiva de ontem tivesse sido razoavelmente votada. “Não responder”, fixem bem. E creio que este “não responder” não teve a ver com o facto de o procedimento ter passado, primeiro, pelo chefe de gabinete de cada grupo parlamentar. Teve a ver com uma orientação geral que ultrapassa em muito o estatuto de cada deputado – é, antes, uma marca da própria sociedade. Ou do modo de ser dessa sociedade.

Ora, por que razão não respondeu a maioria dos deputados a essa pergunta simples e banal? Para não se comprometerem. Está certo que nenhum dos representantes da nação – ao contrário da nação, propriamente dita – escolheria Salazar, pelo menos publicamente. Mas, tirando Salazar e Cunhal, a lista dos restantes oito finalistas é pacífica, parece-me bem escolhida, muito bem indicada, tem nomes para todos os gostos. Escolher qualquer um desses nomes, de D. Afonso Henriques a Fernando Pessoa, de Camões a Aristides Sousa Mendes, de D. João II a Pombal, não significaria cometer um pecado venial nem uma decisão politicamente incorrecta.

Então, por que decidiu a maioria dos deputados, de acordo com a reportagem do JN, não responder à pergunta? Insisto: para não se comprometer. Quase quinhentos anos depois da Inquisição, quarenta anos depois de Salazar, trinta anos depois do 25 de Abril, “não se comprometer” é ainda o melhor – por causa do medo. Por causa do receio em arriscar, em ter uma opinião (mesmo que errada, mesmo que depois se mude), em ser confrontado com outras opiniões.

O que custaria indicar um nome? Pouco. Na pior das hipóteses, o “perigo” residiria em que alguém escolhesse outro nome – e que houvesse um debate, uma pequena polémica. Mas o melhor é “não se comprometer”, não causar ondas, não expor a opinião em público para não correr o risco de ser confrontado com ela; ou, pior, de ser penalizado ou castigado por causa dela.

Evidentemente que a “eleição” do “grande português” não passa de um jogo, e não vem grande mal ao mundo que se cumpra dessa maneira. Um jogo é, aliás, uma coisa bastante séria porque revela os sinais de carácter e as subtilezas culturais dos participantes. Mas o medo de jogar revela muito mais e o retrato que daí se tira não é muito positivo: quarenta anos depois de Salazar, o seu espírito – mais do que a sua memória – continua a pairar sobre os nossos contemporâneos e, juntamente com o dele, há também o pavor da Inquisição, o medo da opinião defendida em público e a necessidade de excluir os contrários. Ou, sobretudo, o medo de pertencer aos contrários.

Portugal precisa não de um mas de vários jogos sobre “os grandes portugueses” – até para dessacralizar um pouco os obscuros labirintos da nossa História. Há argumentos sérios sobre a leviandade deste concurso televisivo, mas as vantagens que até agora dele se tiraram são inegáveis, a começar pelo facto de relembrar que o nosso passado não está apenas povoado nem de luminosos momentos de glória nem de abomináveis descidas aos infernos. Mas isso é o menos.

in Jornal de Notícias – 26 Março 2007


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março 24, 2007

Galegos da Linha


Trata-se de cozinha de inspiração galega na Marginal, muito saborosa, num restaurante pequeno mas que vale a pena visitar.

Falem-me da "Marginal", porque eu gosto da Marginal, aquela que termina à entrada de Cascais e começa no Alto da Boa Viagem, em Caxias. Falem-me da Marginal ao fim da tarde, com a luz da primei­ra Primavera. Conheço o cenário de cor há muitos anos mas — confessemos — comovo-me sempre um pouco com essa luz e com aquele mar. Todos temos direito aos nossos pequenos deslizes paisagísticos.

Paço de Arcos é um dos pontos de paragem — escre­vo esta frase e sinto-me a plagiar Ramalho Ortigão no seu “Praias de Portugal. Guia do Banhista e do Viajante” ou Maria Archer na sua monografia da Linha de Cascais. Em boa hora a chamada "rua prin­cipal" foi rearranjada e recuperados os antigos becos ribeirinhos da vila, hoje de empedrado firme — e onde há, aliás, bons restaurantes que merecem visi­ta. No meio de tudo isso, Paço de Arcos conserva, felizmente, alguns pequenos cafés históricos e há pelo menos um, com esplanada, de onde se observa a vida tranquila do final de tarde, aquela despedida do dia, doce e alaranjada. Esperais, caros leitores, estimadas leitoras, um arroubo romântico a partir desta descrição? Desiludi-vos tremendamente, afas­tai essa ideia: a mim, estas coisas abrem-me o apeti­te. Sobretudo o crepúsculo, que me lembra cores fatais como num poema de Cesário Verde.

Pois atravessando a Rua Costa Pinto e subindo na direcção da estação dos caminhos-de-ferro, logo a seguir à pastelaria Oceania (onde se devoram pastéis de nata de massa estaladiça, muito bons), encontro a Casa Gallega, que já é um clássico na zona. Resultou, primeiramente, de uma cisão na cozinha de inspiração galega da Marginal (do Saisa) e seguiu um trilho muito próprio — e tem ali quase tudo: boquerones, cogumelos salteados, o suculento mexilhão de vinagrete, os tão inevitáveis como indispensáveis pimentinhos de Padrón (a terra de Rosália de Castro, fiquem sabendo, ó devoradores sem alma), o polvo à galega (em rodelas muito amis­tosas, polvilhado de sal e colorau, regado com azei­te, que me traz à recordação o "pulpo de feira" da minha própria adolescência orensana), as angulas ou as outras saladinhas da ordem.

O meu coração rejubila, no entanto, com duas evocações solenes. Em primeiro lugar, a sopa de peixe; mas, aplaudindo com as mãos ambas e um sorriso de felicidade, a sopa rica de peixe com lagosta, que constitui por si só uma refeição plena e agradável: peixes e lombinhos de lagosta muito apetecíveis, ternos, carnu­dos, caldo especioso e cujo tempero salta das papilas aos olhos, que também fazem parte do aparelho digestivo. Muito bom.

O sr. Fernando recomenda sempre peixe, e faz bem, porque é a parte mais nobre da lista, que não se limi­ta a apresentá-lo e servi-lo apenas grelhado (mas também): os filetes de linguado à Casa Gallega, fri­tos, são muito apresentáveis, se acompanhados (como eu gosto às vezes) de batatinha frita em cubos; há ainda choquinhos na frigideira e lulas com alho, além das pataniscas de polvo, uma inovação que tem admiradores confessos; segue-se outro clássico, a pescada frita à basca, que é uma das mi­nhas escolhas recorrentes, provando que não se come pescada apenas em filetes fritos com polme ou cozida com todos, havendo ainda lugar para a espe­tada, para o caril e para a açorda de gambas, além do ensopado de cação galego, a parrilhada de mariscos (outro clássico que me lembra as Rias Bajas) e o sável com açorda ou as fritadas de pregado ou rodovalho – em posta. Em dias de euforia, o coração e o estô­mago pedem-me, ambos, que escolha o arroz de cherne com lagosta, cujo caldo apetece por vezes molhar com pãozinho (o que já se faz com a sopa rica). Salve-se a decência nestas ocasiões, mas recor­dem-se os textos de D. Ramón Otero Pedrayo sobre certas maneiras à mesa. Nesta quadra há ainda lam­preia à bordalesa para apreciadores. Lá iremos.

Nas carnes, a lista explode, a abrir, com a perdiz com vinagre de cidra e segue para as costeletas de borre­go. Há ainda bife com pimenta ou com Roquefort, costeletas, escalopes — e, encomendando, “paella”. Quereis mais? Ide às sobremesas, que são boas, e à carta de vinhos, que é muito boa. E tudo simpático, ainda por cima.

À lupa
Vinhos: * * * *
Digestivos: * * * *
Acesso: * * * *
Decoração: * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 82
Vinhos brancos: 40
Espumantes & Champanhes: 6
Portos & Madeiras: 14
Uísques: 24
Aguardentes Portuguesas: 12

Outros dados
Charutos: Sim
Estacionamento: Pode ser complicado
Levar crianças: Sim
Área de não-fumadores: Sim
Reserva: Muito aconselhável
Preço médio: 30 euros

CASA GALLEGA
Avenida Padrão Joaquim Lopes, 7
2780-616 Paço de Arcos
Tel: 214 432 400
Encerra aos domingos

in Revista Notícias Sábado – 24 Março 2007

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Os belgas, esses sacos de pancada

1. Ora, quem são os belgas? Uns chatos. Eles não têm culpa, mas sabem-no bem: são uns chatos. Repare-se: albergam o maior número de chatos de toda a União Europeia em Bruxelas; a maior parte dessa gente aborrecida é, por sua vez, uma boa quota de chatos de todos os países da União, a avaliar pelas decisões que tomam e pelo aspecto doentio que apresentam; há excepções, mas foram assimiladas. Em segundo lugar, os grandes artistas belgas do século XX, por exemplo, lamentaram a própria chatice dos belgas – um escritor como Hugo Claus (que escreveu um livro intitulado "A Tristeza dos Belgas") ou um cantor como Jacques Brel (que cantava "Le plat pays"). Em terceiro lugar, o humor, quero dizer, a humilhação dos belgas, um dos povos europeus sobre quem se contam mais anedotas; não é muito brilhante como retrato. Depois, em quarto lugar (já para não falar da política, em que flamengos e valões disputam o poder sobre um território que ninguém quer para si de bom grado), o futebol belga – um modelo de aborrecimento, de inépcia e de vulgaridade que de vez em quando tem sucesso contra equipas distraídas. Vem isto a propósito da pequena guerra que nasceu das declarações do guarda-redes belga que pedia sarrafada sobre Cristiano Ronaldo. Peço desculpa por contrariar o tom geral de indignação patriótica, mas esse belga merece o meu aplauso particular: é um herói num país ligeiramente aborrecido (eu gosto muito de Antuérpia, uma das minhas cidades europeias). Digamos que ele se distingue bravamente antes da batalha com os rapazes da nossa selecção – pediu que dessem duro no Cristiano Ronaldo. E, para corrigir, lamento que ele não tenha dito: "Não, eu não pedi para castigarem unicamente o Ronaldo. Eu pedi para aniquilarem todos!" Isso é que era. Eu levantar-me-ia, aplaudindo. Num mundo em que todos fingem e lutam para serem mais palermas e sonsos do que o vizinho, esse guarda-redes de que me esqueci o nome merece aplauso, palmadas nas costas – e que lhe paguemos uma cerveja. Bravo, rapaz! Tu contrarias essa imagem papalva dos belgas! Tu estás à nossa medida. Futebol e estalada, uma bela dupla. E tudo se acabava, indo a rapaziada jogar à bola – esmagando os belgas, leal e convenientemente.

2. Mas não. Os rapazes, aqui, em vez de se indignarem com coisas sérias, puseram-se em bicos de pés, histéricos, protestando contra os belgas. Má jogada. Eu, se chegasse a Bruxelas, ou à minha cidade de Antuérpia, e fosse recebido por uma horda de repórteres que me cercavam, invectivavam e exigiam que eu falasse, quando – justamente – eu não queria falar, também os mandava à merda. Os belgas tinham o direito de não querer falar. Tinham o direito de ir para o hotel beber umas cervejas ou comer mexilhões. Tinham o direito de não ser empurrados nem insultados. Eu, por mim, teria ido ao aeroporto recebê-los de sorriso largo, depois de almoço, prevenindo-os de que a batalha seria tão dura que eles não durariam os dois minutos regulamentares em campo. Mas não. Há sempre alguém que estraga tudo. Deixassem o dr. Madaíl protestar, que era função dele. Mas, entre nós, que sabemos que os belgas são inofensivos, contaríamos anedotas sobre belgas.

3. Finalmente, é bom que Portugal ganhe. De goleada ou com notoriedade. O prazo está a esgotar-se. E mais nada.

in Topo Norte - Jornal de Notícias - 24 Março 2007

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março 19, 2007

O maravilhoso país da Ota

A culpa pelo que aconteceu aos 70 trabalhadores portugueses encontrados em Navarra, a viver em condições sub-humanas, explorados por energúmenos e sujeitos a humilhações, não pode ser totalmente assacada às entidades portuguesas do estrangeiro nem à rede consular portuguesa. Evidentemente que devia existir alguma vigilância. Mas a responsabilidade deve ser atribuída, em boa parte, às autoridades portuguesas e nenhuma justificação sobre a “descoordenação” das polícias tem aqui razão de ser. Expliquemos como e porquê.

Segundo os relatos, esses portugueses vêm de chamadas zonas “deprimidas” do Norte do país, com problemas sociais e familiares. Desconhece-se, na generalidade, o que são “problemas sociais e familiares”, mas foi assim que as agências elaboraram a sua tipologia sociológica e psicológica. Acontece que um dos pormenores mais significativos diz respeito à nacionalidade dos angariadores de escravos: dos 17 suspeitos entretanto libertados por ordem judicial, 13 são portugueses.

Para quem pensava que iam longe as histórias de exploração e de humilhação da época de emigração portuguesa em massa para França ou Alemanha, aí está o retrato do que nunca acaba: o retrato mais abjecto da condição humana (escravizar, humilhar e explorar o semelhante), com abundante marca lusitana. Simplesmente, essas redes de angariadores funcionam em plena luz do dia, recrutando desempregados ou indigentes, sem quaisquer escrúpulos e sem grande vigilância policial. A razão de isso acontecer é atribuída, com alguma razão, ao facto de não haver denúncias nem testemunhos de vítimas dessas redes.

Em depoimentos públicos (ouvi bastantes nos últimos dias, na rádio sobretudo), emigrantes ou antigos emigrantes afirmavam aceitar muitas dessas condições humilhantes, colocadas pelos angariadores, em nome da família ou dos filhos. Compreende-se o drama, a infelicidade e a coragem da maior parte deles, dispostos a sacrifícios enormes e até trágicos para garantir a sobrevivência das suas famílias.

Segundo percebi, os trabalhadores libertados pela Guardia Civil espanhola já estão a trabalhar em outras explorações agrícolas de Navarra e recusam-se a falar com a imprensa ou a contar “toda a verdade” às autoridades. Trata-se de um muro de silêncio, de um pacto de silêncio para proteger não apenas a ilegalidade mas, dramaticamente, a dolorosa busca de subsistência nas quintas espanholas da região.

O maravilhoso país da Ota e das “opas” produz acontecimentos destes. Não, não se trata, como ouvi dizer nestes dias, de uma má imagem de Portugal no estrangeiro. O espectáculo não é degradante por ter ocorrido no estrangeiro. O acontecimento é degradante por estarem em causa emigrantes, porque as polícias foram incapazes de impedir esse tráfico humano e porque os algozes são portugueses.

Segundo parece, a construção do novo aeroporto aumentará a oferta de emprego e talvez possa albergar muitos desses trabalhadores que procuram garantir a sobrevivência das suas famílias sujeitando-se a humilhações e a condições desumanas. Eu prefiro, apenas, que os emigrantes emigrem sem terem de passar por este calvário – e que as polícias actuem para impedir que os energúmenos possam ter negócio, e sejam presos, e condenados. Portugal não oferece tantas garantias como isso.

P.S. - A Dra. Maria Manuel Leitão Marques, cujo trabalho na Unidade de Coordenação da Modernização Administrativa merece largos elogios, respondeu neste jornal às minhas dúvidas sobre o Cartão Único. Na verdade, tal como a Dra. Maria Manuel assinala, a nossa liberdade e a nossa privacidade dependem muito “de como a informação é guardada, do direito que temos de conhecer os nossos dados e para que são utilizados”. Pois aí está a questão essencial.

in Jornal de Notícias – 19 Março 2007

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março 17, 2007

Alentejo em Alvalade


Num bairro lisboeta, um restaurante de ressonâncias alentejanas pode ser uma (boa) surpresa.

Há várias teorias sobre como deve ser uma crónica de restaurante; e, inclusive, discussões sobre se um colunista "de restaurante" pode ser considerado "crítico gastronómico", ou sobre se um crítico gastro­nómico pode, até, escrever sobre restaurantes. Nero Wolfe, o detective nova-iorquino criado por Rex Stout, ia uma vez por mês ao Rusterman, dirigi­do pelo seu bom amigo Marko Vukcik. Era ali que Wolfe se sentava a uma das mesas do piso superior, saboreando pratos que ele próprio, Marko e até Fritz Brenner (cozinheiro privativo do detective, na sua casa da Rua 35), tinha discutido previamente. Nenhumas ovas de sável se comparavam às de Fritz, mas as do restaurante Rusterman aproximavam-se, tirando a quantidade de chalotas apresentadas no caldo.

Marko seria depois assassinado no romance 'A Montanha Negra', um dos relatos mais apaixonantes de todas as aventuras de Wolfe - e obrigá-lo-ia a viajar até Montenegro, sua terra natal, entre­tanto convertida em parte da Jugoslávia, paredes meias com a Albânia; foi aí que Wolfe e Archie Goodwin encontraram o assassino de Marko. Mas, pelo meio, uma grande peregrinação gastronómica leva o detective a cozinhar massa em Bari, a provar cordeiro em Podgoritza e a passar fome nas mon­tanhas. Tão pouca arte? Tão pouca arte. Mas a sim­plicidade da cozinha não significa a sua menorida­de; até porque uma coisa é a cozinha e outra a gas­tronomia, propriamente dita, que inclui colecções de arte culinária brutais ou barrocas, sinfonias majestosas que arrastam consigo séculos de criati­vidade e de imaginação prodigiosas. A simplicida­de não é um grande monumento artístico - mas pode constituir uma reparação gastronómica notá­vel: um pratinho de feijão cozinhado com azeite e legumes, uns espargos salteados com ovos, uns cogumelos massajados pela gema de um ovo, que poderei dizer-vos de uma lista interminável?, podem ser elementos de prazer e de conforto sem que, por isso, lhes seja erigido um monumento que ateste a sua qualidade artística.

O Salsa & Coentros, no bairro de Alvalade, em Lisboa, oscila entre a simplicidade e os momentos de arte fatal que deixam os estômagos a desvairar-se. Coincidências entre o arroz de lebre, o 'carpaccio' de bacalhau, a sopa de cação, os filetes de garoupa com arroz de tomate e pimentos ou a empada de perdiz. Há aqui coisas sublimes: a empada de perdiz é uma delas, mas o pódio pode ser encimado pelo arroz de lebre, uma experiência de cabidela que aconselho vivamente aos aprecia­dores, e até pode despontar o pratinho de migas de batata e ovo, resumo dessa miraculosa simplici­dade caseira, doméstica, familiar, transformada em apelo exótico. E é. Tudo isto tem evidentes res­sonâncias alentejanas, de que desde já advirto, a começar pelas variedades de miguinhas ou de pratos onde entra o porco preto (que me parece popularizado para além do desejável, mas enfim) ou ainda de saladinhas que servem de entrada (favas com azeite...).

Portanto, retomando o fio da crónica, o que deve ela conter: precisamente, um reparo ao que se comeu. Ora, eu não tenho reparos a fazer ao arroz de lebre em cabidela, muito suculento e com o grão no ponto, com um caldo muito apetitoso. Nem à empada de perdiz, com a massa devidamente cora­da, o recheio magnífico, sem arrebiques, em que eram evidentes os pedaços da ave, com a qual – sejamos sinceros – se faz excelente literatura e gastronomia sem muitos ademanes porque perdiz é perdiz, e sendo boa a perdiz bom será o molho vilão em que ela voa, e boa será a empada em que ela se desfolha.

A lista de sobremesas é tradicional e alentejana – mas eu pelo-me pelo requeijão com mel, porque tenho direito a avarias letais e a pecados que me levam a esperar o café. Assim fiz: esperei o café com a suspeita de que estava numa casa onde se comia muito, muito bem. Sabe-se (já o escrevi) que não simpatizo com excesso de coentros para provar a marca alentejana; mas aqui o nome vai bem, em nome do equilíbrio geral.

À lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * *
Acolhimento: * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 94
Vinhos brancos: 40
Portos & Madeiras: 12
Uísques: 24
Aguardentes & Conhaques: 12

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Difícil na zona, mas com parque próximo
Levar crianças: Sim
Área de não-fumadores: Sim
Reserva: Aconselhável ao almoço
Preço médio: 28 euros

SALSA & COENTROS
R. Coronel Marques Leitão, 12
Lisboa (Alvalade)
Tel.: 21 841 0990
Encerra aos domingos

in Revista Notícias Sábado – 17 Março 2007

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Ganhar por meio golo de vantagem

1. Volto ao mesmo: não me im­porto de ganhar por meio golo de vantagem. Por um golo de nada, até um miserável golo que faça mais pela corrida ao campeonato do que uma exibição daquelas, fantástica, com sujeito, predicado & complemento directo. Prefiro isso aos lamentos. Mas gostava de ver um belo jogo, mesmo assim. Um jogo leal, aberto, mas com meio golo de vantagem – pelo me­nos – para o meu lado (desculpa, Manuel António Pina, mas tu farias o mesmo, ou "melhor" até, para sermos francos).

2. No clima de ressentimento em que andamos, cheio de vira-latas, há outra coisa que me daria jeito: que a habitual meia-dúzia de paler­mas não provocasse desacatos de um ou de outro lado. Que seja futebol, mesmo: nada de amiguinhos, de palmadas nas costas e de "o que importa é que seja um belo es­pectáculo". Como dizia o Artur Semedo, quando lhe perguntaram se esperava que o jogo fosse "um belo espectáculo": "Quando quero um belo espectáculo vou à ópera. Aqui, quero que o meu clube ga­nhe." Portanto, nada de opera – mas que seja uma guerra leal entre gente decente. Berraria, insultos habituais, gargalhadas para humi­lhar o adversário, sim senhor. Mas deixem que seja o futebol a falar.

3. Há uma coisa que me surpreen­de cada vez mais nos programas de televisão sobre futebol (tirando o "Trio d 'ataque"): o ar enfastiado dos especialistas e comentadores. Todos muito enjoados e zangados com o futebol, permanentemente a fazer doutrina sobre o que não se jogou, e a pedir o fim do futebol que não seja jogado em "replay" ou ocu­pado a perder-se em conversas so­bre "os dirigentes" e as "estratégias da direcção". Não compreendo como tanta gente junta é incapaz de sorrir sequer. Sinceramente, o futebol sem humor não vale a pena. A gente vê o" Prós e contras" e ape­tece mandá-los jogar matraquilhos. Mas amordaçados.

4. O presidente do Sporting diz que o jogo de hoje é uma "fi­nal para o título de campeão". Não me parece. As finais são com a Académica, o Belenenses, o Boavista, o Nacional e o Paços de Ferreira, com quem o F. C. Porto vai jogar de­pois.

5. Simão tem sido o jogador fundamental do Benfica. Não direi que gosto dele, mas reconheço que tem sido a alma do Benfi­ca – faço-o com uma certa inveja porque, se Simão tivesse ou­tra camisola, seria um prazer vê-lo traçar as linhas de golo diante da baliza adversária. Ele equilibra o ataque e procura marcar golos do lugar certo. Não é tudo, claro, mas é o fundamen­tal para ganhar nem que seja com meio golo de vantagem.

6. Pedro Mantorras declarou em tribunal que ganha 10 000 euros mensais. Por esse valor, o Benfica devia ser obrigado a pagar-lhe uma carta de condução novinha, em folha. É o mínimo.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 17 Março 2007

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Francisco José Viegas - Prémio da Academia Portuguesa de Gastronomia

Para a "gente do sector" já com uns anos de experiência, e não em início de carreira, os prémios que a Academia Portuguesa de Gastronomia distribui anualmente ao melhor cozinheiro, ao melhor profissional de sala e a quem melhor escreve sobre "comes e bebes" são sem dúvida os mais prestigiados. Até porque praticamente não há outros, salvo o do concurso Chefe Cozinheiro do Ano, mas mais voltado para novos talentos. Por isso, é sempre interessante saber para quem vão os Prémios de Excelência dos académicos. Ontem, foram anunciados os seguintes, relativos a 2006: Luís Baena, chefe do restaurante Quinta de Catralvos (Azeitão), Grande Prémio da Arte da Cozinha. Arlindo Madeira, chefe de sala e escanção do restaurante Tavares (Lisboa), Grande Prémio do Serviço de Sala. Francisco José Viegas, escritor e cronista gastronómico da NS' - Notícias Sábado (revista do DN e do JN), Grande Prémio da Cultura e Literatura Gastronómica. (...)

Finalmente, Francisco José Viegas, já distinguido com vários prémios literários, disse ao DN que ficou "cheio de orgulho" com este. "Tivemos sempre muita gastronomia na literatura portuguesa, mas os autores mais recentes não tratam dela, ao contrário do que acontece, por exemplo, no Brasil ou em Espanha. É pena." Sobre o seu trabalho na NS', diz não se considerar um crítico gastronómico, embora saiba as bases e procure estar bem informado, mas sim um cronista. "Escrever sobre restaurantes dá-me muito prazer", responde, quando se pergunta onde arranja tempo e disposição para as suas crónicas, entre a escrita, a direcção da Casa Fernando Pessoa e os programas na televisão.E um cronista nunca "diz mal" do restaurante que visita? "Às vezes, quando é preciso, também digo", garante, embora a academia tenha sobre ele escrito: "A sua proverbial boa disposição, a procura quase sistemática de nos chamar a atenção para 'o que é bom', em detrimento do vulgar e fácil 'dizer mal', eleva-o por mérito próprio à referência do crítico gastronómico por excelência."

in DN Online - 17 Março 2007

março 15, 2007

Viajar pelo Sul

A nossa ideia do Sul é composta, essencialmente, por imagens de praias lu­minosas e "azuladas", uma espécie de an­tecâmara fraternal do paraíso conforme o concebiam os navegadores do século XVI e os utopistas do nosso tempo - uma ter­ra sem pecado, para termos presente a obra de Gauguin. Esses lugares sem peca­do não existem, como se sabe, mas con­vém que os imaginemos, para que não se perca a nossa capacidade de sonhar.

Viajar pelo Sul é um dos grandes so­nhos admitidos aos europeus - do outro lado do mundo existiria um pouco da fe­licidade que a vida quotidiana nos nega aqui. Não poderiam dizê-lo os tripulantes do Bounty, o navio da Armada Real Bri­tânica que partira de Spithead a 23 de Dezembro de 1787 com destino ao Taiti. A história é conhecida – a revolta na Bounty — e deu origem ao filme com Marlon Brando, rodado em Tetiaroa, um atol das "ilhas do vento". Os sobreviventes do caso refugiaram-se nas ilhas Pitcairn, um destino invulgar hoje em dia. Os da­dos disponíveis são interessantes: a ilha principal é habitada por cerca de 50 pes­soas (na verdade descendentes dos mari­nheiros revoltados e dos polinésios que os acompanharam) e a maior parte dos seus naturais emigrou para a Nova Zelândia, regressando periodicamente para visitar aquele território de origem vulcânica com uma língua de areia que faria as de­lícias de qualquer utopista do século XVIII. A ideia do "bom selvagem" não seria, no entanto, confirmada nos tempos recentes — cerca de um quarto da popula­ção masculina foi julgada (e boa parte condenada) por abusos sexuais, em 2004.

Seja como for, há na história das Pitcairn um pormenor ao qual deveríamos estar mais atentos: o da sua descoberta, em 1606, por um navegador português, nascido em Évora em 1565, Pedro Fer­nandes de Queirós. Queirós não consta no Olimpo dos nossos Descobrimentos e a razão essencial deve prender-se com o facto de ter trabalhado fundamental­mente para a coroa espanhola. A própria descoberta das Pitcairn ocorreu na etapa final de uma viagem que se iniciou no Pe­ru, de onde partiu em 1605 - no ano anterior recebera a incumbência, por parte de Filipe III (Filipe II de Portugal) de coordenar a exploração de todo o Pacífi­co. A 21 de Dezembro de 1605, Queirós partiu com três embarcações (San Pedro y Paulo, San Pedro e Los Tres Reyes) para descobrir o que houvesse a descobrir. Um mês depois chegaria lá, às Pitcairn; quase outro mês passado e descansaria por algum tempo no Taiti, outra descoberta. A 25 de Abril de 1606, seis anos depois da chegada de Pedro Álvares Cabral à costa baiana, o navegador de Évora chegou ao território que James Cook, muitos anos depois (em 1773) chamaria Novas Hébridas - ou seja, é um português que descobre aquilo que hoje conhecemos co­mo Vanuatu. Queirós acreditava que es­sas ilhas eram parte de um continente mais vasto, a mítica Terra Australis (a Ter­ra Australis Incógnita, roubada a Aristóteles), outro dos grandes mitos das nave­gações do Sul. Designou esse continente como Austrália del Espiritu Santo, nome retomado pelo próprio Thomas Cook.

A chegada do português às Pitcairn, em Janeiro de 1606, foi o primeiro passo dessa viagem memorável que o rei de Es­panha e de Portugal não deixou perpe­tuar. O eborense regressou a Acapulco, no Norte, em Outubro desse ano, e par­tiu de seguida para Madrid a fim de pedir ao rei que o deixasse colonizar esses terri­tórios. Mas Filipe III já tinha problemas que bastassem na Europa e na América.

Quando oiço falar de Vanuatu, por exemplo, ou das Pitcairn (a ilha dos revoltados do Bounty), tento imaginar Pe­dro Fernandes de Queirós - e não consi­go. Eis como viajar pelo Sul é também viajar pelo esquecimento. Já conhecia Pe­dro Fernandes de Queirós?

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Março 2007

março 12, 2007

Liberais, à moda antiga

É impossível falar de liberdade sem falar gente que, à moda antiga, preza a liberdade. Não se trata de liberalismo – para não confundir com uma das cartilhas em voga; trata-se de liberdade e, por isso, tenho falado de “liberais à moda antiga” a propósito de uma série de pessoas que, geralmente de modo solitário e à revelia do pensamento dominante, se preocupa com estas questões.

Ora, independentemente do que se tem escrito sobre o Sistema Integrado de Segurança Interna (SISI) e sobre a sua dependência directa do primeiro-ministro, que também supervisiona o Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) e os serviços de informações (SIS e SIED), há aqui matéria para reflexão. Não só sobre aspectos técnicos mas, também, acerca do acesso que uma só pessoa pode ter a dados cujo cruzamento pode constituir uma intromissão ilegítima do Estado ou de funcionários do Estado na vida dos cidadãos.

Há, evidentemente, a posição corrente que manda dizer que “quem não deve não teme”. Nesta perspectiva, tanto o conhecimento da folha de IRS como o acesso a toda a base de dados do Ministério da Justiça ou a elementos sobre a vida familiar do cidadão (aproveitamento escolar, património, carreira, etc.) podem ser públicos, que daí não viria mal ao mundo. Justamente, vem: há dados que, reunidos, constituem uma ameaça à esfera privada dos indivíduos e podem sinalizar uma intromissão inadmissível na sua vida familiar. Não pelos dados em si mesmo – mas pelo que se pode fazer com eles em circunstâncias que estão para além da lei.

É preciso dizer que esses dados estão acessíveis, mas não é ainda possível cruzá-los de modo a ter uma ficha completa do cidadão (neste caso, dos funcionários do Estado). Mas ninguém desconhece que, em casos de investigação policial, é possível ter acesso a esses elementos, e que o combate ao terrorismo colocou novas e profundas exigências às forças de segurança.
Ninguém ignora que estão em causa direitos individuais. E, se ninguém pode garantir que existam “direitos individuais absolutos” (para já não matraquear a velhíssima e pernóstica declaração de que “a minha liberdade acaba onde começa a dos outros”), também não é legítimo que os supostos “direitos colectivos” possam massacrar os direitos individuais.

Não estão em causa, nestas dúvidas, nem o primeiro-ministro José Sócrates nem o seu respeito pelos valores da liberdade. O que deve alertar-nos, a todos, é que essa concentração da vigilância (bem como as possibilidades que oferece), sendo permanente e publicamente justificada com a necessidade de eficácia e de um melhor Estado, é aceite sem pestanejar e sem discussão. Apenas meia dúzia de solitários escreve sobre o assunto e manifesta preocupações acerca da liberdade – em cuja base, como escrevia esta semana Vasco Pulido Valente, está a privacidade. Em Portugal, fala-se bastante de cidadania mas não dos cidadãos; prefere-se o Estado aos indivíduos; garante-se a liberdade em termos gerais mas dispensa-se a reflexão sobre o direito à privacidade, à esfera privada e à confidencialidade.

Só o facto de não haver discussão, quer sobre essa proposta governamental de concentração dos serviços de informação e segurança, quer sobre o cruzamento de dados dos funcionários do Estado e da Administração Pública, quer sobre o mesmo cruzamento de dados municiado pelo Cartão Único, é no mínimo preocupante. Mas pensar que os cidadãos (e os seus representantes parlamentares) estão dispostos a abdicar dessa discussão por não a acharem relevante, pode vir a ser aterrador.

Hoje, o cruzamento de dados pelo Estado, o Cartão Único, e a concentração de informação. Amanhã, a vigilância e o controle das famílias e dos indivíduos. Foi sempre assim.

in Jornal de Notícias – 12 Março 2007

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março 10, 2007

A casa do sr. Emilio


É um dos restaurantes mais tradicionais de Lisboa mas não assusta: a Adega da Tia Matilde joga sempre em casa.

Várias das minhas melhores digestões começaram neste restaurante. Não porque seja adepto do Benfica (que é, digamos, o clube mais visível nas lapelas dos seus habituais frequentadores, para não mencionar o Sr. Emílio, o proprietário da casa) mas porque é fácil ficarmos rendidos a estas mesas graças à sua comida.

Na última vez que fui à Adega da Tia Matilde (era segunda-feira) lá estava Eusébio da Silva Ferreira, o Pantera Negra. Havia mais – pelo menos – duas dúzias de confessos, públicos e conhecidos adeptos do Benfica. Mesmo assim, senti-me em casa; pela comida, evidentemente, que não olha a bancadas e prefere estômagos tranquilos e paladares receptivos. O problema – o meu problema, confesso – é que sou muito receptivo (oh, quanto!) ao cardápio da Adega da Tia Matilde. Lembra-me o calendário de refeições da minha infância e adolescência, rodeado de hortas, sabores plácidos, comoventes, pratos sinceros, leais, suculentos (infelizmente, falta a este retrato a existência de uma horinha para a sesta), pelo que a minha imparcialidade está naturalmente posta em causa. Mas, como dizia Churchill, não se pode ser parcial numa disputa entre o fogo e o esquadrão dos bombeiros.

Se a carta de vinhos é generosa e dá uma ideia da clientela – para quem as opções seguras são mais apreciadas do que falhanços no meio de uma experiência tentadora – já a lista dos pratos tem de ser feita de memória, evocando idas antigas e recentes. Por exemplo, as pataniscas de bacalhau não se queixam da ausência do bicho, que está lá, desfiado e em pedaços, embora o arroz de grelos nem sempre esteja de aplaudir. O cabrito no forno é suculento e quase sempre tentador na ementa, bem apresentado (infelizmente servido apenas com excelentes batatinhas e arroz apropriado – mas sem verduras, o que me leva a pedir frequentes vezes uns grelos salteados, por exemplo). O bacalhau à Gomes de Sá, outra hipótese que já escolhi, é quase perfeito, tal como o arroz de cabidela da casa, generoso e simples, feito ao meu gosto selvagem, ou a feijoada à transmontana de algumas ocasiões e que, como dizia o Jacinto de “A Cidade e as Serras”, rescende (embora eu lhe prefira a dobrada, muito boa). Alguns amigos são fanáticos da lampreia da Tia Matilde e reconheço os aromas do prato mas, em matéria desta zona da ementa, sou adepto fervoroso da caldeirada – no ponto, com gordinhos pimentos, rodelas de cebola, peixes sem espinhas, caldo espesso e alaranjado, um tom picante muito delicado.

Outra das áreas onde se sai sempre bem servido da Tia Matilde e a dos peixes, cozidos ou grelhados, servidos em dose generosa (e com azeite de boa qualidade), apetitosos sobretudo quando vêm da grelha (nesta semana havia um cherne que merecia propaganda). Nunca comi o arroz de mariscos (lagosta incluída), mas confio na declaração de bons garfos que mo gabaram como estando “a preceito”. De que eu me lembro mais? De linguadinhos fritos com arroz de grelos, de uns bons filetes de pescada (está a chegar, espero, a temporada em que eles sabem bem na companhia da salada russa), do polvo suado com arroz que me deixou saudades, do arroz de pato, das costeletas de borrego ou do “meu” bacalhau com grão – servido em posta muito bem demolhada (ou seja, ao contrário do que agora é moda, sem lhe retirarem todo o sal e as gelatinas fundamentais). No mais, um formoso arroz doce e uma tarte folhada de maçã, além do bolo de chila e de uma maçã assada (que já vi substituída por marmelo assado), compõem uma lista tradicional (esqueciam-me as amêijoas e a mioleira de cabrito com ovos, que fazem parte da lista fixa) a que os clientes pouco ligam, preferindo perguntar – de viva voz – o que está melhor para almoço.

O Sr. Emílio, generoso, com aquela placidez e extrema boa educação, passa pelas mesas e confere como está o ar dos clientes; vê-se alguma satisfação em redor. São rostos que denunciam apetites tradicionais, portugueses, que desconfiam da “cozinha de fusão”. Em certa medida, na Adega da Tia Matilde, também eu não a admitiria.

À lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * * *
Acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 98
Vinhos brancos: 41
Portos & Madeiras: 15
Uísques: 32
Aguardentes & Conhaques: 20
Espumantes & Champagnes: 10

Outros dados
Charutos: Sim
Estacionamento: Difícil na zona, mas com parque próximo
Levar crianças: Não
Área de não-fumadores: Não
Reserva: Aconselhável
Preço médio: 30 euros

ADEGA DA TIA MATILDE
Rua da Beneficência, 77 1600-017 Lisboa
Tel: 217972172
Encerra domingos e sábados ao jantar

in Revista Notícias Sábado - 10 Março 2007

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Depois do erro de Helton, salvemos Helton

1. No futebol, dizia Nelson Rodrigues, há uma glória desmedida no pequeno resultado. A goleada deixa o adversário humilhado e o vencedor convencido de uma im­portância que às vezes não tem; era, portanto, preferível ganhar pela margem mínima, que tinha a virtude de manterás equipas à beira do abismo e, portanto, em estado de alerta. Hoje todos queremos ga­nhar "de goleada". Num mundo perigoso e aborrecido, já não temos paciência para dispu­tas complicadas.

2. Paulo Bento, naturalmen­te, comentou e deitou água na fervura a propósito dos ordenados do Sporting, recente­mente tornados públicos. O treina­dor de Alvalade acha que os jogadores "não têm que se preocupar com o que os outros ga­nham", e devem man­ter "um comportamen­to social correcto, por­que estão ao serviço de um grande clube". Com­preende-se o discurso de Bento, que tresanda a inge­nuidade forçada. Na sua posi­ção, que poderia dizer? Mas não é fácil entendera discrepância entre Nani (12 mil) e Romagnoli (66 mil euros), ou Bueno (73 mil) e Moutinho (32 mil), por exem­plo. Paulo Bento diz que os jo­gadores devem, agora, justificar os ordenados. Perdão, mas, salvo erro, alguns deles já o fizeram. Tudo na vida é comparação.

3. Falemos ainda de Liedson, casti­gado por dois jogos depois do em­pate em Leiria. O Sporting reagiu como "virgem ofendida", surpreen­dido por alguém poder-sequer-imaginar que Liedson teria dado uma sapatada no jogador da União. Coisa mais fácil, se ele estava irrita­do. De resto, há uma série de joga­dores pouco confiáveis para os ár­bitros e para os espectadores (de Liedson a Postiga, passando por Nuno Gomes): uma das suas espe­cialidades é "conseguir penãltis". São bons jogadores, marcam golos - mas eu não confiaria neles. Flu­tuam como malandros.

4. Depois do erro de Helton, salve­mos Helton. Também Jesualdo não poderia fazer outra coisa, de­pois de um digno Vítor Baía ter dito o inevitável, ou seja, que não era necessário crucificar o guarda-redes brasileiro. Depende: salvamo-lo porque é nosso; fosse adversá­rio e teríamos o direito e o dever de inventar piadas sobre o assunto. Mas Helton, o Homem de Borra­cha, é um caso à parte, porque a sua percentagem de "frangos" é diminuta. Infelizmente, aconteceu logo ali, com Mourinho à vista. Já é preciso ter pontaria. Azar, queria eu dizer. Helton tem de salvar-se a si próprio.

5. Dizem as crónicas desta semana que "Diego fez a vida negra aos de­fesas do Celta" e que, como se sabe, "Hugo Almeida saltou do banco, aos 65 minutos, para mar­car, aos 86, o único golo do Werder Bremen frente ao Celta de Vigo". Diego foi vítima do molho holandês que Adriaanse deixou no Dragão; Hugo foi vítima da ressaca do mo­lho holandês. Se há indemnização a pagar a alguém, eu só conheço esta: a de Adriaanse aos adeptos. Só as contas de Diego já dão para desequilibrar o saldo. Até ao fim do ano, por cada sucesso de Diego e de Hugo Almeida, hei-de massa­crar os especialistas de transferências do F. C. Porto.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 10 Março 2007

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março 06, 2007

Coisas que é bom não terem desaparecido dos EUA

A tolerância. As ementas de Sunday brunch. Os parques. O taxista caboverdiano Joseph Santos. Os restaurantes de onde se vê Manhattan ao longe. As estradas entre florestas. As cidades «do mar» entre NY e Rhode Island, Newport incluída. Georgetown, a M Street e o bar Nathan’s (e as longas conversas tardias com o Nuno M.P.) em Washington. O The Sports na 7ª Av, em NY. A comida que recupera os sabores de infância com níveis de colesterol médios e ovos cozinhados de todas as maneiras. O prime rib steak. As batatas novas salteadas com alho. As smoker’s stations à porta dos aeroportos, que evitam que os passeios estejam sujos de beatas. Onésimo Teotónio de Almeida. Bagels. Barnes & Noble. Os saldos de 50% das livrarias. Os saldos de 60% na livraria da Brown, em Thayer Street. A mania de proteger as árvores. O arquivo de jazz da Rutgers University e a vitrina onde está o trompete verde de Miles Davis. Sanduíche de pastrami em pão de centeio e batatas fritas passadas por alho, farinha de milho e ervas. A tolerância com que os americanos aturam as ideias feitas dos europeus sobre o seu país. A Brown University – com as suas bibliotecas abertas de noite, os casarões ocupados por estudantes, os relvados, as árvores e o Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros. O túmulo de H.P. Lovecraft, que hei-de ver da próxima vez. As cores, o cheiro dos livros, as sombras (e a multiplicação dos misteriosos exemplares de Lives of the English Poets, de A Journey to the Western Islands of Scotland, de Samuel Johnson e de Life of Johnson, de Boswell), as cadeiras nos recantos mais inesperados da Athenaeum (a quarta mais antiga biblioteca dos EUA, em Providence – que Edgar Allan Poe frequentava). E, já agora, não muito longe, a tranquilidade da John Hay Library, e a beleza da John Carter Brown Library. A pluralidade racial. As capas dos livros, os saldos dos livros, os livros. As public libraries. A mercearia do Sr. Pedroso, no velho bairro português de Providence. Os pequenos-almoços suculentos e cheios de colesterol. As melhores cervejas do mundo, da Sierra Nevada à Sam Adams (Nut Brown ou Triple Bock), da Leinenkugel à Breckenridge, da McNeill’s à Anchor Steam. O hábito de dizer how are you? como cumprimento. Os estrangeiros que são americanos. Os americanos tranquilos. O sistema de financiamento dos estudos universitários. R.W. Emerson. Os restaurantes, o Cliff Walk, a pequena Touro Synagogue e as mansions (The Breakers, Marble House, Rosecliff) de Newport. O comandante do avião que atravessou a pista de Albany a correr, no meio da neve, para arranjar água para os passageiros do avião (que tinha sido desviado por causa do mau tempo). Chávenas de clam chowder. Onésimo outra vez. Cape Cod ao longe.

in A Origem das Espécies - 5 Março 2007

março 05, 2007

A preguiça na Universidade

Uns tempos de visita a universidades americanas mostram realidades assustadoras - para as universidades portuguesas. Cursos que começam a horas, salas ocupadas, bibliotecas abertas durante a noite; o panorama deixa-nos "pró-americanos", para retomar uma classificação pejorativa muito em voga. E deixa um amargo de boca quando se lêem os resultados do inquérito sobre a Universidade de Coimbra, realizado por Rui Bebiano e Elísio Estanque, e que nos informa que cerca de 18,3% dos inquiridos revelou jamais ler livros (ou seja, 33% de rapazes e 11% de raparigas) e 33% não ler jornais. Este inquérito dá conta da surdez da universidade e, embora seja mudo, grita bastante, dá conta da miséria verdadeira em ambiente universitário.

Em Washington, na Georgetown, dei uma conferência na sala de Estudos Árabes; os alunos não protestaram por ser à hora de almoço e reparei que, num semestre, tinham lido mais livros portugueses do que todos os frequentadores da Universidade de Coimbra durante um ano ou mais. Muito mais, aliás. Uns dias depois, assisti a uma aula de filosofia na Brown, em Providence, - discutia-se "A Ideologia Alemã", de Marx e Engels, que os alunos tinham lido, juntamente com Weber, Nietzsche, Feuerbach ou passagens de Hegel. Aliás, o professor lançava armadilhas a meio "Em que página vem isso? Em que livro leu esse conceito?" Na semana seguinte vão discutir Weber. Lêem dez livros por semestre neste curso.

A Brown University, aliás, é um exemplo traumático. As bibliotecas enchem-se depois das oito da noite, após o jantar. À meia-noite podem consultar-se microfilmes ou assistir a reuniões de grupos de trabalho na área das ciências. Na quinta-feira passada fui convidado para jantar com um grupo de alunos no Faculty Club da Brown; às dez da noite pediram desculpa mas tinham de retirar-se - havia trabalho para fazer e era preciso aproveitar a biblioteca até mais tarde. No dia seguinte, ao meio-dia, estavam na minha conferência e tinham lido textos entretanto sugeridos. Encontrei-os ao fim da tarde numa das bibliotecas de humanidades a requisitar livros para o fim-de-semana, se bem que a sexta-feira à noite começava com uma aula de ginástica ou um jogo de futebol nos terrenos da universidade. Sim, eram alunos de letras mas fazem desporto na universidade. Longe vão os tempos em que Raul Miguel Rosado Fernandes, homem das letras clássicas, à frente de um grupo da Faculdade de Letras de Lisboa, se sagrou campeão nacional de remo, derrotando inclusive a equipa da Escola Naval. Quem quiser comparar os alunos da época com os de hoje, há-de perceber como eles se tornaram menos leitores, menos saudáveis e mais doentios.

Em Portugal inventamos muitas desculpas e desvalorizamos os relatórios que dão conta da preguiça congénita dos nossos universitários. As excepções, valiosas, têm o aspecto de uma explosão que há-de ser contrariada pelo ambiente da própria universidade corredores sujos, grafitis nas paredes, os poucos relvados desertos, as bibliotecas pouco utilizadas para investigar. Contei isto a alguns amigos. Falei-lhes do sistema de empréstimo de livros, do ritmo de leitura, das livrarias cheias no centro de Providence, das actividades extracurriculares, do facto de os alunos dos estudos Portugueses e Brasileiros terem lido Eça (3 a 4 livros), Camilo, Machado, Cesário, Camões e de saberem bastante de literatura portuguesa e brasileira contemporânea (não "por ouvir dizer" mas por "ler"). E de os debates nas aulas serem aguerridos, ricos, mostrando leitura e preparação. Disseram-me que eu estava muito americanizado embora eu me limitasse a mostrar-lhes os resultados do inquérito sobre a Universidade de Coimbra, onde se vê - como escrevi - o retrato da miséria escolar e da miséria cultural.

Basta comparar. Basta estar atento. Basta ler os sinais desta pobre falta de curiosidade portuguesa. Pobre país que tanto precisa de punir a pequena "nomenklatura" preguiçosa.

in Jornal de Notícias - 5 Março 2007

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março 03, 2007

Italiano, de facto


No Luca, em Lisboa, há uma cozinha italiana com alguns toques portugueses, mediterrânicos e orientais. Um restaurante competente e acolhedor.

O mundo dos restaurantes reserva-nos surpresas onde menos esperamos e conserva-nos optimistas quando esperamos a desilusão. Há em todos nós o gérmen da desconfiança – em relação à cozinha, ao cardápio, à felicidade.

Escrevi algumas vezes (e pelo menos uma nesta coluna) que a busca da cozinha perfeita (ou ideal) é uma busca da felicidade. Nem sempre se encontra ou, para sermos realistas, nunca se encontra –, mas há aproximações. Mas a nossa capacidade de nos comovermos diante de um prato, de uma sugestão, de uma mesa, de um aroma, vem do grau de disponibilidade que manifestarmos.

Pepe Carvalho, o detective de Manuel Vázquez Montalbán, descobriu (numa pequena novela inti­tulada 'Asesínato en Prado del Rey') que os charutos se apagam diante de pessoas que os odeiam. De timi­dez, de protesto, por pudor, por vingança? Um misto destas razões. Um 'mix', como é agora moda dizer-se. Pois também os pratos servidos nos restau­rantes se apagam da sua possibilidade de glória, do seu brilho e, muitas vezes, dos seus aromas, quando são colocados diante de energúmenos que detestam comer, que afirmam a necessidade de sobreviver contra o destino e apenas encaram a vida com enfa­do.

O Luca não só tem um ambiente acolhedor, uma decoração simpática que lhe agradecemos ou um punhado de empregados diligente: tem uma respira­ção invulgar que acrescenta valor o facto de irmos lá. Mas, atenção!, não se trata (como acontecia nos anos oitenta...) "de um espaço" que tanto podia ser restaurante como sala de leitura. Não. Há, nessa res­piração de que vos falei, aromas, sabores, texturas, cores, coisas de que vale a pena falar. Por exemplo, da salada de queijo de Azeitão panado, do 'carpaccio' de chispe e orelha de porco com vinagreta morna de ovo, alcaparras e vinagre, 'croutons' e salada de rúcula, que foi uma agradabilíssima sur­presa, ou do em tempos provado 'micuit' de 'foie gras' com frutos secos marinados. Três exemplos de entradas do Luca, se bem que existam variações sazonais ou semanais que, como percebi, podem alterar o cardápio e emprestar-lhe outros perfumes.

Há aqui, portanto, cozinha italiana com portuguesíssimos toques e com endividamentos simpáticos às culturas do mediterrâneo (há aqui Levante) ou orientais. Qualquer uma destas referências é bem-vinda. Depois das entradas (numa lista recatada e nada exibicionista), estávamos em dia de risotos, e embarcámos no de cinco especiarias, com carne marinada, espargos verdes salteados e mascarpone, numa lista onde ainda havia o 'alla milanese' (de lulas, açafrão e majericão), o de Treviso, com alho, 'bacon', 'radicchio' (que saudades!) e vinho tinto, ou o 'sienese', de bochechas de porco confitadas, alho-francês e 'parmigiano'.

Experiência a repe­tir, de uma das próximas idas: 'fettuccine' com salsi­cha de porco preto; os 'gnocchi' com lagostins e molho de tomate, onde os lagostins passam pela chapa antes de nos chegarem à mesa com um tom levemente picante, muito agradável; 'ravioli' de bacalhau, caldo de parmigiano, catalão de porco preto e camarões; ou os 'ravioli' de camarão tigre, verdadeiro festival multicultural, onde se cruza o ele­mento italiano propriamente dito com o leite de coco, o caril e o perfume de lima – além de coisas suculentas como a paleta de borrego confitada, espe­rando ter companhia para o 'chuletón' de boi (para duas pessoas), para o 'carré' de vitela ou o 'magret' de pato no forno com abacaxi de molho de laranja. De resto, 'coulant' de avelã ou de chocolate, além do ‘tiramisu' marroquino (com laranja, amêndoa, o creme 'mascarpone' e gelado de líchias!) são pro­postas essenciais de uma lista de sobremesas muito atraente e que suscitou comentários entusiásticos (com o pormenor muito simpático de haver reco­mendações de vinhos para cada escolha).

Resta dizer, evidentemente, que o serviço é muito simpático – um trunfo com sotaque brasileiro – e que o restaurante, em si, é muito bonito. Aí está o essencial.

À lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 45
Vinhos brancos: 21
Portos & Madeiras: 15
Uísques: 32
Aguardentes & Conhaques: 20
Espumantes & Champagnes: 8

Outros dados
Charutos: Não
Estacionamento: Difícil na zona, mas com parque próximo
Levar crianças: Não
Área de não-fumadores: Não
Reserva: Imprescindível
Preço médio: 40 euros

LUCA
R. Santa Marta, 35
1150-292 Lisboa
Tel: 21. 3150 212
Encerra aos domingos e aos sábados ao almoço

in Revista Notícias Sábado – 3 Março 2007

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Defrontar o passado e o futuro

1. Outra vez longe da pátria também gosto do futebol assim. Ouço os relatos pela rádio, na Internet, vejo as notícias, interesso-me, estou atento aos comentários dos portugueses da América sobre o futebol português. Sabem tudo, estão próximos, muito próximos, sabem a que minutos fo­ram feitas as substituições, quem marcou os golos, um a um. É um em­préstimo do futebol americano e do basebol, acho eu. Tanto o futebol americano como o basebol (embora este tenha regras mais complexas e seja uma espécie de idiossincrasia nacional) dependem de minudências – um passe, um gesto, um segundo, um indício de movimento. Por isso, os americanos são muito minuciosos quando analisam qualquer desporto; eles sabem que se trata de ganhar, e de ganhar com justiça, com trabalho, com dedicação, com esforço. Assim, à distância, compreendo que aqui se achem ridículas as tentativas de enganar os árbitros, de fazer mau jogo, de ludibriar o público com que­das aparatosas. Qualquer dirigente desportivo seria trucidado em poucas semanas por ter manipulado declara­ções ou por ter mentido aos adeptos. E, aliás, nenhum dirigente desportivo teria a importância que deve ser credi­tada aos jogadores. Eles, os ama­nuenses, não sabem como se ganha dois metros a um adversário em pleno estádio.

2. Os americanos gostam de despor­to. Aqui, nos EUA, um atleta é aprecia­do porque é um atleta. Em Portugal – por exemplo – os atletas são "figuras públicas" porque se distinguem como "figuras públicas" nas revistas cor-de-rosa.

3. Vejo, também à distância, que há uma onda Quaresma a varrer parte da imprensa. Natural, mas atrasadinhos como de costume. Primeiro porque Quaresma era do F. C. Porto; depois porque Quaresma foi alvo de um ra­cismo subtil, maneirinho, silencioso (já descrevi várias vezes aqui); finalmen­te, porque é sempre bom invejar um génio que pode cair no meio de uma trivela.

4. Hoje, o F. C. Porto defronta o Braga, a equipa de Jorge Costa. Estranha forma como evoluíram as coisas. Há dez anos seria impossível pensar num desfecho assim: Jorge Costa (o "Bruce Willis de Ermesinde"), emblema do F. C. Porto, abandonar o futebol sem ser debaixo de um aclamação unâni­me no seu estádio. Lamentei-o aqui. Achei triste. Jorge Costa que tinha sido varrido do clube por Octávio Ma­chado regressou para ser campeão com Mourinho e, depois, varrido de novo. Hoje, no Dragão, Jorge Gosta defronta o passado e o futuro; é certo que Jesualdo também revive o Braga, mas Jorge Costa tem um desafio maior pela frente. Ele foi injustiçado.

in Topo Norte – Jornal de Notícias – 3 Março 2007

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