março 12, 2007

Liberais, à moda antiga

É impossível falar de liberdade sem falar gente que, à moda antiga, preza a liberdade. Não se trata de liberalismo – para não confundir com uma das cartilhas em voga; trata-se de liberdade e, por isso, tenho falado de “liberais à moda antiga” a propósito de uma série de pessoas que, geralmente de modo solitário e à revelia do pensamento dominante, se preocupa com estas questões.

Ora, independentemente do que se tem escrito sobre o Sistema Integrado de Segurança Interna (SISI) e sobre a sua dependência directa do primeiro-ministro, que também supervisiona o Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) e os serviços de informações (SIS e SIED), há aqui matéria para reflexão. Não só sobre aspectos técnicos mas, também, acerca do acesso que uma só pessoa pode ter a dados cujo cruzamento pode constituir uma intromissão ilegítima do Estado ou de funcionários do Estado na vida dos cidadãos.

Há, evidentemente, a posição corrente que manda dizer que “quem não deve não teme”. Nesta perspectiva, tanto o conhecimento da folha de IRS como o acesso a toda a base de dados do Ministério da Justiça ou a elementos sobre a vida familiar do cidadão (aproveitamento escolar, património, carreira, etc.) podem ser públicos, que daí não viria mal ao mundo. Justamente, vem: há dados que, reunidos, constituem uma ameaça à esfera privada dos indivíduos e podem sinalizar uma intromissão inadmissível na sua vida familiar. Não pelos dados em si mesmo – mas pelo que se pode fazer com eles em circunstâncias que estão para além da lei.

É preciso dizer que esses dados estão acessíveis, mas não é ainda possível cruzá-los de modo a ter uma ficha completa do cidadão (neste caso, dos funcionários do Estado). Mas ninguém desconhece que, em casos de investigação policial, é possível ter acesso a esses elementos, e que o combate ao terrorismo colocou novas e profundas exigências às forças de segurança.
Ninguém ignora que estão em causa direitos individuais. E, se ninguém pode garantir que existam “direitos individuais absolutos” (para já não matraquear a velhíssima e pernóstica declaração de que “a minha liberdade acaba onde começa a dos outros”), também não é legítimo que os supostos “direitos colectivos” possam massacrar os direitos individuais.

Não estão em causa, nestas dúvidas, nem o primeiro-ministro José Sócrates nem o seu respeito pelos valores da liberdade. O que deve alertar-nos, a todos, é que essa concentração da vigilância (bem como as possibilidades que oferece), sendo permanente e publicamente justificada com a necessidade de eficácia e de um melhor Estado, é aceite sem pestanejar e sem discussão. Apenas meia dúzia de solitários escreve sobre o assunto e manifesta preocupações acerca da liberdade – em cuja base, como escrevia esta semana Vasco Pulido Valente, está a privacidade. Em Portugal, fala-se bastante de cidadania mas não dos cidadãos; prefere-se o Estado aos indivíduos; garante-se a liberdade em termos gerais mas dispensa-se a reflexão sobre o direito à privacidade, à esfera privada e à confidencialidade.

Só o facto de não haver discussão, quer sobre essa proposta governamental de concentração dos serviços de informação e segurança, quer sobre o cruzamento de dados dos funcionários do Estado e da Administração Pública, quer sobre o mesmo cruzamento de dados municiado pelo Cartão Único, é no mínimo preocupante. Mas pensar que os cidadãos (e os seus representantes parlamentares) estão dispostos a abdicar dessa discussão por não a acharem relevante, pode vir a ser aterrador.

Hoje, o cruzamento de dados pelo Estado, o Cartão Único, e a concentração de informação. Amanhã, a vigilância e o controle das famílias e dos indivíduos. Foi sempre assim.

in Jornal de Notícias – 12 Março 2007

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