março 05, 2007

A preguiça na Universidade

Uns tempos de visita a universidades americanas mostram realidades assustadoras - para as universidades portuguesas. Cursos que começam a horas, salas ocupadas, bibliotecas abertas durante a noite; o panorama deixa-nos "pró-americanos", para retomar uma classificação pejorativa muito em voga. E deixa um amargo de boca quando se lêem os resultados do inquérito sobre a Universidade de Coimbra, realizado por Rui Bebiano e Elísio Estanque, e que nos informa que cerca de 18,3% dos inquiridos revelou jamais ler livros (ou seja, 33% de rapazes e 11% de raparigas) e 33% não ler jornais. Este inquérito dá conta da surdez da universidade e, embora seja mudo, grita bastante, dá conta da miséria verdadeira em ambiente universitário.

Em Washington, na Georgetown, dei uma conferência na sala de Estudos Árabes; os alunos não protestaram por ser à hora de almoço e reparei que, num semestre, tinham lido mais livros portugueses do que todos os frequentadores da Universidade de Coimbra durante um ano ou mais. Muito mais, aliás. Uns dias depois, assisti a uma aula de filosofia na Brown, em Providence, - discutia-se "A Ideologia Alemã", de Marx e Engels, que os alunos tinham lido, juntamente com Weber, Nietzsche, Feuerbach ou passagens de Hegel. Aliás, o professor lançava armadilhas a meio "Em que página vem isso? Em que livro leu esse conceito?" Na semana seguinte vão discutir Weber. Lêem dez livros por semestre neste curso.

A Brown University, aliás, é um exemplo traumático. As bibliotecas enchem-se depois das oito da noite, após o jantar. À meia-noite podem consultar-se microfilmes ou assistir a reuniões de grupos de trabalho na área das ciências. Na quinta-feira passada fui convidado para jantar com um grupo de alunos no Faculty Club da Brown; às dez da noite pediram desculpa mas tinham de retirar-se - havia trabalho para fazer e era preciso aproveitar a biblioteca até mais tarde. No dia seguinte, ao meio-dia, estavam na minha conferência e tinham lido textos entretanto sugeridos. Encontrei-os ao fim da tarde numa das bibliotecas de humanidades a requisitar livros para o fim-de-semana, se bem que a sexta-feira à noite começava com uma aula de ginástica ou um jogo de futebol nos terrenos da universidade. Sim, eram alunos de letras mas fazem desporto na universidade. Longe vão os tempos em que Raul Miguel Rosado Fernandes, homem das letras clássicas, à frente de um grupo da Faculdade de Letras de Lisboa, se sagrou campeão nacional de remo, derrotando inclusive a equipa da Escola Naval. Quem quiser comparar os alunos da época com os de hoje, há-de perceber como eles se tornaram menos leitores, menos saudáveis e mais doentios.

Em Portugal inventamos muitas desculpas e desvalorizamos os relatórios que dão conta da preguiça congénita dos nossos universitários. As excepções, valiosas, têm o aspecto de uma explosão que há-de ser contrariada pelo ambiente da própria universidade corredores sujos, grafitis nas paredes, os poucos relvados desertos, as bibliotecas pouco utilizadas para investigar. Contei isto a alguns amigos. Falei-lhes do sistema de empréstimo de livros, do ritmo de leitura, das livrarias cheias no centro de Providence, das actividades extracurriculares, do facto de os alunos dos estudos Portugueses e Brasileiros terem lido Eça (3 a 4 livros), Camilo, Machado, Cesário, Camões e de saberem bastante de literatura portuguesa e brasileira contemporânea (não "por ouvir dizer" mas por "ler"). E de os debates nas aulas serem aguerridos, ricos, mostrando leitura e preparação. Disseram-me que eu estava muito americanizado embora eu me limitasse a mostrar-lhes os resultados do inquérito sobre a Universidade de Coimbra, onde se vê - como escrevi - o retrato da miséria escolar e da miséria cultural.

Basta comparar. Basta estar atento. Basta ler os sinais desta pobre falta de curiosidade portuguesa. Pobre país que tanto precisa de punir a pequena "nomenklatura" preguiçosa.

in Jornal de Notícias - 5 Março 2007

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