março 10, 2007

A casa do sr. Emilio


É um dos restaurantes mais tradicionais de Lisboa mas não assusta: a Adega da Tia Matilde joga sempre em casa.

Várias das minhas melhores digestões começaram neste restaurante. Não porque seja adepto do Benfica (que é, digamos, o clube mais visível nas lapelas dos seus habituais frequentadores, para não mencionar o Sr. Emílio, o proprietário da casa) mas porque é fácil ficarmos rendidos a estas mesas graças à sua comida.

Na última vez que fui à Adega da Tia Matilde (era segunda-feira) lá estava Eusébio da Silva Ferreira, o Pantera Negra. Havia mais – pelo menos – duas dúzias de confessos, públicos e conhecidos adeptos do Benfica. Mesmo assim, senti-me em casa; pela comida, evidentemente, que não olha a bancadas e prefere estômagos tranquilos e paladares receptivos. O problema – o meu problema, confesso – é que sou muito receptivo (oh, quanto!) ao cardápio da Adega da Tia Matilde. Lembra-me o calendário de refeições da minha infância e adolescência, rodeado de hortas, sabores plácidos, comoventes, pratos sinceros, leais, suculentos (infelizmente, falta a este retrato a existência de uma horinha para a sesta), pelo que a minha imparcialidade está naturalmente posta em causa. Mas, como dizia Churchill, não se pode ser parcial numa disputa entre o fogo e o esquadrão dos bombeiros.

Se a carta de vinhos é generosa e dá uma ideia da clientela – para quem as opções seguras são mais apreciadas do que falhanços no meio de uma experiência tentadora – já a lista dos pratos tem de ser feita de memória, evocando idas antigas e recentes. Por exemplo, as pataniscas de bacalhau não se queixam da ausência do bicho, que está lá, desfiado e em pedaços, embora o arroz de grelos nem sempre esteja de aplaudir. O cabrito no forno é suculento e quase sempre tentador na ementa, bem apresentado (infelizmente servido apenas com excelentes batatinhas e arroz apropriado – mas sem verduras, o que me leva a pedir frequentes vezes uns grelos salteados, por exemplo). O bacalhau à Gomes de Sá, outra hipótese que já escolhi, é quase perfeito, tal como o arroz de cabidela da casa, generoso e simples, feito ao meu gosto selvagem, ou a feijoada à transmontana de algumas ocasiões e que, como dizia o Jacinto de “A Cidade e as Serras”, rescende (embora eu lhe prefira a dobrada, muito boa). Alguns amigos são fanáticos da lampreia da Tia Matilde e reconheço os aromas do prato mas, em matéria desta zona da ementa, sou adepto fervoroso da caldeirada – no ponto, com gordinhos pimentos, rodelas de cebola, peixes sem espinhas, caldo espesso e alaranjado, um tom picante muito delicado.

Outra das áreas onde se sai sempre bem servido da Tia Matilde e a dos peixes, cozidos ou grelhados, servidos em dose generosa (e com azeite de boa qualidade), apetitosos sobretudo quando vêm da grelha (nesta semana havia um cherne que merecia propaganda). Nunca comi o arroz de mariscos (lagosta incluída), mas confio na declaração de bons garfos que mo gabaram como estando “a preceito”. De que eu me lembro mais? De linguadinhos fritos com arroz de grelos, de uns bons filetes de pescada (está a chegar, espero, a temporada em que eles sabem bem na companhia da salada russa), do polvo suado com arroz que me deixou saudades, do arroz de pato, das costeletas de borrego ou do “meu” bacalhau com grão – servido em posta muito bem demolhada (ou seja, ao contrário do que agora é moda, sem lhe retirarem todo o sal e as gelatinas fundamentais). No mais, um formoso arroz doce e uma tarte folhada de maçã, além do bolo de chila e de uma maçã assada (que já vi substituída por marmelo assado), compõem uma lista tradicional (esqueciam-me as amêijoas e a mioleira de cabrito com ovos, que fazem parte da lista fixa) a que os clientes pouco ligam, preferindo perguntar – de viva voz – o que está melhor para almoço.

O Sr. Emílio, generoso, com aquela placidez e extrema boa educação, passa pelas mesas e confere como está o ar dos clientes; vê-se alguma satisfação em redor. São rostos que denunciam apetites tradicionais, portugueses, que desconfiam da “cozinha de fusão”. Em certa medida, na Adega da Tia Matilde, também eu não a admitiria.

À lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * * *
Acesso: * * *
Decoração: * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 98
Vinhos brancos: 41
Portos & Madeiras: 15
Uísques: 32
Aguardentes & Conhaques: 20
Espumantes & Champagnes: 10

Outros dados
Charutos: Sim
Estacionamento: Difícil na zona, mas com parque próximo
Levar crianças: Não
Área de não-fumadores: Não
Reserva: Aconselhável
Preço médio: 30 euros

ADEGA DA TIA MATILDE
Rua da Beneficência, 77 1600-017 Lisboa
Tel: 217972172
Encerra domingos e sábados ao jantar

in Revista Notícias Sábado - 10 Março 2007

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