março 15, 2007

Viajar pelo Sul

A nossa ideia do Sul é composta, essencialmente, por imagens de praias lu­minosas e "azuladas", uma espécie de an­tecâmara fraternal do paraíso conforme o concebiam os navegadores do século XVI e os utopistas do nosso tempo - uma ter­ra sem pecado, para termos presente a obra de Gauguin. Esses lugares sem peca­do não existem, como se sabe, mas con­vém que os imaginemos, para que não se perca a nossa capacidade de sonhar.

Viajar pelo Sul é um dos grandes so­nhos admitidos aos europeus - do outro lado do mundo existiria um pouco da fe­licidade que a vida quotidiana nos nega aqui. Não poderiam dizê-lo os tripulantes do Bounty, o navio da Armada Real Bri­tânica que partira de Spithead a 23 de Dezembro de 1787 com destino ao Taiti. A história é conhecida – a revolta na Bounty — e deu origem ao filme com Marlon Brando, rodado em Tetiaroa, um atol das "ilhas do vento". Os sobreviventes do caso refugiaram-se nas ilhas Pitcairn, um destino invulgar hoje em dia. Os da­dos disponíveis são interessantes: a ilha principal é habitada por cerca de 50 pes­soas (na verdade descendentes dos mari­nheiros revoltados e dos polinésios que os acompanharam) e a maior parte dos seus naturais emigrou para a Nova Zelândia, regressando periodicamente para visitar aquele território de origem vulcânica com uma língua de areia que faria as de­lícias de qualquer utopista do século XVIII. A ideia do "bom selvagem" não seria, no entanto, confirmada nos tempos recentes — cerca de um quarto da popula­ção masculina foi julgada (e boa parte condenada) por abusos sexuais, em 2004.

Seja como for, há na história das Pitcairn um pormenor ao qual deveríamos estar mais atentos: o da sua descoberta, em 1606, por um navegador português, nascido em Évora em 1565, Pedro Fer­nandes de Queirós. Queirós não consta no Olimpo dos nossos Descobrimentos e a razão essencial deve prender-se com o facto de ter trabalhado fundamental­mente para a coroa espanhola. A própria descoberta das Pitcairn ocorreu na etapa final de uma viagem que se iniciou no Pe­ru, de onde partiu em 1605 - no ano anterior recebera a incumbência, por parte de Filipe III (Filipe II de Portugal) de coordenar a exploração de todo o Pacífi­co. A 21 de Dezembro de 1605, Queirós partiu com três embarcações (San Pedro y Paulo, San Pedro e Los Tres Reyes) para descobrir o que houvesse a descobrir. Um mês depois chegaria lá, às Pitcairn; quase outro mês passado e descansaria por algum tempo no Taiti, outra descoberta. A 25 de Abril de 1606, seis anos depois da chegada de Pedro Álvares Cabral à costa baiana, o navegador de Évora chegou ao território que James Cook, muitos anos depois (em 1773) chamaria Novas Hébridas - ou seja, é um português que descobre aquilo que hoje conhecemos co­mo Vanuatu. Queirós acreditava que es­sas ilhas eram parte de um continente mais vasto, a mítica Terra Australis (a Ter­ra Australis Incógnita, roubada a Aristóteles), outro dos grandes mitos das nave­gações do Sul. Designou esse continente como Austrália del Espiritu Santo, nome retomado pelo próprio Thomas Cook.

A chegada do português às Pitcairn, em Janeiro de 1606, foi o primeiro passo dessa viagem memorável que o rei de Es­panha e de Portugal não deixou perpe­tuar. O eborense regressou a Acapulco, no Norte, em Outubro desse ano, e par­tiu de seguida para Madrid a fim de pedir ao rei que o deixasse colonizar esses terri­tórios. Mas Filipe III já tinha problemas que bastassem na Europa e na América.

Quando oiço falar de Vanuatu, por exemplo, ou das Pitcairn (a ilha dos revoltados do Bounty), tento imaginar Pe­dro Fernandes de Queirós - e não consi­go. Eis como viajar pelo Sul é também viajar pelo esquecimento. Já conhecia Pe­dro Fernandes de Queirós?

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo – Março 2007