maio 14, 2007

Uma entidade desregulada

A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) desenvolveu um método de análise do pluralismo na informação da televisão em Portugal; segundo os senhores conselheiros (há apenas uma abstenção), muito embora não identifiquem “pluralismo político” com “pluralismo político-partidário”, há uma percentagem razoável a atribuir, no espaço informativo, a cada grupo partidário; segundo percebi, 50% cabe ao governo e ao PS, 48 à oposição e 2% à chamada oposição extraparlamentar. Durante três meses, a ERC vai medir, minuto a minuto, as aparições de líderes políticos, de representantes de partidos, de informação sobre esses grupos (estendendo-se “a outros protagonistas e temáticas, tais como autarcas e autarquias, sindicalistas e temas laborais, associações de natureza vária”, etc.). Esse sistema, diz a ERC, “permite avaliar de forma sistemática e fiável” o cumprimento desse dever – o do pluralismo, suponho, e também “tratamento jornalístico equitativo e plural daquelas entidades nos espaços informativos do serviço público de televisão”.

Se o leitor, chegado aqui, ainda não desconfiou de nada, tenho-o por uma pessoa de fé. Eu não tenho má-fé, mas desconfio – porque é minha obrigação, como cidadão. Qualquer pessoa sabe que os partidos se digladiam em torno do espaço de que dispõem na televisão; é propaganda para eles e, como pensa a ERC, é informação para o cidadão. Dito isto, cabe às redacções, munidas deste “aparelho de verificação do pluralismo”, trabalhar para não ofender ninguém. Se o leitor se recorda do que há tempos aconteceu com a polémica à volta dos horários dos tempos de antena (que acabaram por ser impostos pelos partidos à televisão pública), então imagine o que vai acontecer daqui em diante: no parlamento, haverá almas indignadas: quantos minutos couberam ao PSD, quantos minutos couberam à CGTP, quanto tempo calhou ao PPM? Marques Mendes não tem nada a dizer aos portugueses e – num arremedo de sensatez – decide calar-se durante três meses? Não importa: a televisão, para não falhar nas suas obrigações, terá de falar sobre o PSD. O governo está na ordem do dia porque um ministro se demitiu? Mesmo assim, que não se ultrapassem os 50% concedidos ao executivo.

Eu sei de onde a ERC tirou esta ideia estapafúrdia: do princípio de que a sociedade e os cidadãos (e os partidos, as instituições, a associação dos automobilistas, os sindicatos dos pescadores e a associação de agricultores do Oeste) precisam de estar sob vigilância porque, por si mesmos, não vão a lado nenhum. A ERC teme que as pessoas se queixem. Perturba-a que o deputado Agostinho Branquinho se queixe. Está obcecada pela ideia de que o PS possa queixar-se. Treme à ideia de Paulo Portas aparecer mais do que, nos seus critérios, merece. Assusta-a que o PCP se exceda.

Tudo isto, admito, por “boa-fé” e por manifesto desejo de “representatividade” e proporcionalidade” na informação televisiva. Esta “boa-fé”, no entanto, acabará por reduzir-se (se ninguém travar a tentação controladora da entidade) ao domínio e fragmentação da informação televisiva pelos partidos políticos. Mais: há-de conduzir, se ninguém de bom-senso questionar este delírio, à mais completa irrelevância do conceito de informação e de jornalismo.

A culpa desta situação é, como se sabe, dos partidos – que sempre tentaram manipular a informação televisiva a seu bel-prazer. Entregar-lhes este belo argumento de mão beijada é uma espécie de asneira preanunciada.

Não sei de onde a ERC tirou a ideia de que a independência do jornalismo se mede por critérios retirados dos resultados eleitorais. Mas posso lembrar-lhes que essa maravilhosa ideia levou – noutros países – à censura, ao medo e ao que se sabe no México ou na Venezuela.

in Jornal de Notícias – 14 Maio 2007

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