junho 03, 2007

Beleza e felicidade

De vez em quando, a escolha dos lugares sobrepõe-se à alegria de via­jar, propriamente dita, àquela sensação de perdição que marca as grandes viagens. Durante muitos anos — os da ado­lescência — imaginei como seria a Islân­dia; li o que havia para ler. Restavam, além dos «países possíveis» (ou seja, paí­ses que era possível visitar, como a Irlan­da e o México), dois pequenos territórios como o Suriname e o Belize. Estive na fronteira do Suriname, vindo do Brasil, atravessando o Equador no sentido do Norte; e passei a minha temporada de Belize, as antigas Honduras Britânicas.

Nenhum livro me levou até lá, mes­mo sabendo que Graham Greene e Aldous Huxley tinham escrito sobre o Belize. Para Huxley, o Belize era um terri­tório para lá de especial: ninguém iria ao Belize senão para ir ao Belize. Ou seja: é um país que não fica a caminho de ne­nhum outro, sitiado entre as Honduras, a Guatemala e o México. Ao contrário de todos os países da América Central, o Belize não sofreu as desventuras das guerras civis, nem as das ditaduras políticas - e fala-se inglês. Mais: às quatro da tarde, o país relaxa e toma o seu chá (ou, bem entendido, a sua garrafa de Belikin, a saborosa cerveja recriada por Wolfram Köehler, um mestre cervejeiro que tive a alegria e o conforto de conhecer) para escutar, pela rádio, as notícias da BBC a partir de Londres.

Eu, que tinha lido Somerset Maugham e imaginara as suas personagens de olhar perdido e de vida sem rumo, ao balcão de um bar na Tailândia, ou num café na índia, acabei por encontrá-las no Belize, tomando bebidas no Bellevue Hotel (que entretanto fechou as portas) ou procurando repetir os passos de River Phoenix, visitando o Lily Rose Café & Pátio (restaurante onde o actor tinha mesa permanente), ou vagueando nas ruas em redor do pequeno canal que atravessa Belize City, a primeira capital (a actual é Belmopan, uma espécie de pequena Brasília desenhada a esquadro). Cidade de estrangeiros perdidos ou fora­gidos, Belize City, com as suas constru­ções de madeira colorida, os seus automóveis dos anos cinquenta e sessenta, é também o chamado destino de sonho. Por um acaso da natureza (que provi­dencia furacões, tempestades tropicais e tufões com a regularidade das estações do ano), a sua geografia foi, durante muito tempo, poupada aos grandes ho­téis ou aos resorts luxuosos; nas keys (as ilhas do golfo, rente ao recife de coral - o segundo maior do mundo), há ainda pequenos hotéis rodeados de palmeiras, caminhos de areia e terra, e restaurantes de uma simplicidade comovente, que são a única interrupção diante do mar azul e esverdeado. Acho, por mim, que é o mesmo Mar dos Sargaços da escritora Jean Rhys, mas é só imaginação.

Cometi a imprudência de viajar ab­solutamente sozinho no Belize. Não é território para solitários, a menos que se queira pertencer à galeria de perdidos de Maugham ou Graham Greene. Há uma nostalgia perigosa (um dos símbolos do país é a orquídea negra) que nos assalta nos lugares mais belos. Queremos estar junto das pessoas que nos fazem falta – para ver, em companhia, as colinas do Citrus District, admirar as baías do Sul ou adormecer numa sesta junto de Altun Ha, as ruínas maias. Esse é o perigo da viagem em geral: o contacto com a beleza e o seu mistério. Durante algum tempo alimentei o projecto de escrever um romance passado em Belize City. Chamar-se-ia Bellevue Hotel, o livro, e preparei cuidadosamente uma galeria de personagens que me serviria para contar uma história sobre a felicidade. Mas, fi­nalmente, soube que me faltava a histó­ria. A beleza do Belize é o seu afasta­mento, a sua distância, o seu silêncio, a sua ausência de história.

in Outro Hemisfério – Revista Volta ao Mundo - Junho 2007

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