junho 02, 2007

Diante do Tejo à espreita


O Bica do Sapato, em Lisboa, é um luxo português que ainda não saiu da moda.

A história do luxo não é a história da moda, e há luxos que nunca estarão na moda – tal como há modas desprovidas de luxo. O Bica do Sapato está entre as duas coisas: um misto de 'glamour' empres­tado pela fama e de luxo cedido pela magnífica comida. É essa a razão por que uma crónica de res­taurante nunca será uma crítica da cozinha nem uma crítica de cozinha poderá ser um apêndice sobre arte culinária. As coisas estão ligadas, mas a sua ligação é puramente conveniente, circunstancial; tem a ver com noites de beleza, por exemplo, com um apetite providencial, com um encontro, com uma nota mais refinada na corda do violoncelo. Falo da "corda do violoncelo" por falar – é o instrumen­to da pura harmonia, volátil e etérea, que deve invo­car-se nestes casos.

Alfredo Saramago publicou agora um livro sobre vinhos e nele interroga-se sobre "a natureza da apre­ciação". É uma reflexão para que todos estamos convidados. Podemos definir um vinho apenas pelas suas qualidades? É definitivo que um vinho seja a reunião dos seus aromas e o resultado dos bons pro­cedimentos que o produziram? Há coisas que, em determinadas circunstâncias, valem mais ou, pelo menos, valem mais intensamente. Já foi tempo em que o creme de três cebolas com pêra escalfada em vinho branco e telha de queijo fazia as delícias nas entradas, bem como o queijo de cabra gratinado com mel de alfazema sobre estaladiço de tomate confitado ou a saladinha de bacalhau com tomate e poejo, gelatina de suco de tomate e crocante de pimenta verde, tal como as ostras frescas com pão de centeio, vinagre de vinho tinto e chalotas picadas, ou a salada de lavagante, batata e espar­gos verdes em cesto estaladiço com molho rosa e azeite de semente de abóbora tostada. Diante destas propostas, o que dizer? Acrescentar-lhes o 'carpaccio' de ganso com flor de sal, o caranguejo panado com sementes ou a canja de marisco com camarões grelhados. Esqueçamos o estilo (um 'rondó' galante onde se enumeram todos os instrumentos necessá­rios para executar a partitura) e concentremo-nos numa das características essenciais da Bica: a varie­dade.

Já comi uns polvinhos magníficos, grelhados (com rúcola e vinagre balsâmico) e já desafiei em tempos um lombo de bacalhau fresco escalfado em azeite virgem com 'risotto' de bacalhau (com uma colherzinha lateral de compota de tomate e cebola) que veio depois de uma sopa de lentilhas com migas de chouriço e tomilho, enquanto Paul Auster elogiava uma coxa de faisão com legumes. Os filetes de peixe-galo são um recurso tradicional da casa, quer na sua variante "simples", assado, quer – de outra ocasião – panado em sementes sobre puré de batata doce e aipo, funcho caramelizado e fricassé de espargos ver­des ou servido sobre ostras e espinafres com tomate fresco assado ou ainda acompanhado de 'risotto' de espargos. Nas incursões de denominações tradicio­nais, visitemos a lista: crocante de leitão à Bairrada, 'magret' de pato, 'entrecôte' de bisonte, vieiras salte­adas com 'risotto' de baunilha, ou lombo de porco preto com guisado de lentilhas e cacholeira alentejana (de outros tempos), raviolis de caranguejo, pá de cabrito com crosta de azeitonas ou carré de cabrito com puré de feijão branco, entre outras hipóteses saltitantes de acordo com a época, a inspiração, o calendário, a exigência e a memória (a minha).

Sobremesas, exultantes: há gelados Häagen Dazs, bolo de iogurte e azeite, 'parfait' de queijo de cabra com praliné, salada de citrinos, tarte de maçã com gelado de baunilha ou 'coulant' de chocolate amar­go. E há uma lista de vinhos muito bem elaborada, além de um bom serviço de vinhos a copo (com os de sobremesa, muito tradicionais, entre moscatéis, Madeiras e Portos), e esta vista de crepúsculo prima­veril que recomendo acima de toda e qualquer coisa.

Não me refiro, desta vez, à "secção japonesa" do Bica do Sapato, com o seu 'sushi bar', senão para mencio­nar excelentes 'tempuras', a que voltaremos um dia. Mas para recordar o restaurante é sempre preciso voltar um dia mais. A ementa muda, a inclinação do crepúsculo também. A nossa disposição, então -altera-se frequentemente. De umas vezes gosto da decoração, de outras acho-a a precisar de revisão. Mas isso sou eu. As pessoas gostam. O Bica do Sapato não deixa de ser um luxo português que ainda não saiu da moda, nem sairá tão cedo.

À Lupa
Vinhos: * * * *
Digestivos: * * * *
Acesso: * * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * *
Mesa: * * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 90
Vinhos brancos: 50
Aguardentes & Conhaques: 14
Portos & Madeiras: 14
Uísques: 22

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: fácil
Levar crianças: não
Área de não fumadores: não
Reserva: indispensável
Preço médio: 50 euros

BICA DO SAPATO
Av. Infante D. Henrique Armazém B,
Cais da Pedra Santa Apolónia
1100 Lisboa
Tel: 21.8810 3ZO
Encerra aos jantares de domingo

in Revista Notícias Sábado – 2 Junho 2007

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