julho 07, 2007

Evocações à mesa


Uma boa surpresa em Telheiras: o Jacinto, além de bons vinhos a copo, tem apetite. Como se comprova indo lá.

O que é o apetite? O que é o apetite providencial? O que é a satisfação depois de uma refeição? Detenham-se, ó disciplinadores do dicionário, que o assunto não tem a ver convosco, nem – às vezes – comigo. Trata-se de uma respiração, de uma venta­nia, de uma sensação vadia que passa pela mesa e nos acompanha pelo dia fora, se se trata de um almoço a uma destas mesas providenciais. Escrevo esta crónica ao som de Gardel e deve ser por isso: cala-te, coração, não quero sofrer, não repitas nunca esse caminho.

Uma pessoa senta-se à mesa mas isso não basta. Tem a ver com a maneira como nos tratam em pleno anonimato, com o olhar amistoso que o criado deixa cair sobre o lugar onde vai pousar o prato já servido e engalanado, com o tom de suavíssima melancolia com que o chefe se despede de cada tantinho de comida - misturado à alegria que nele des­cobrimos, quando descobrimos que temos ali homem ou mulher à altura do nosso apetite.

Manuel Vázquez Montalbán, num dos seus livros mais "gastronómicos", uma pequena novela intitu­lada 'Asesinato en Prado del Rey', diz que devemos abster-nos de fumar um charuto diante de quem odeia o seu fumo doce, o seu calor intenso, a sua memória tropical. Assim deve ser com a comida que nos chega à mesa, que vem profundamente prejudicada se é servida por alguém que a detesta ou que, no limite, não tem apetite. Nessa altura, enchamo-nos de desfastio, penduremos a caneta, esqueçamos. Já me aconteceu. Já aconteceu ao leitor, certamente, e à leitora ainda mais, sobretudo se é uma cozinheira de truz.

A minha primeira experiência no Jacinto, em Telheiras (Telheiras Velha, como faço questão de dizer, na vetusta Av. Ventura Terra, um nome - e um endereço, já agora - que se deve recordar), foi composta de um pratinho de farinheira e outro de cogumelos, seguindo-se um tanto de jaquinzinhos naquele tamanho "no limite" para a fiscalização das actividades hoteleiras.

Às vezes, achamos que a comida, além das operações de alquimia, química e aritmética simples, exige uma certa ponderação poética. Havia disso. Tudo na temperatura certa, que é um valor a reter. Estava um dia nublado, desses que invadem Junho para nos lembrar a melancolia da Primavera passada. Havia também pimentinhos, havia pão, e havia uma lista de vinhos muito bem escolhidos, à razão de cento e vinte títulos na cate­goria de tintos, mais trinta na de brancos, além de sugestões caso a caso ao ouvido do comensal. Com esta novidade: todos os vinhos do cardápio estão disponíveis na modalidade "a copo", o que repre­senta um notável passo civilizacional. O preço? Basta calcular uma divisão por cinco em relação ao valor da garrafa. É um copo bem medido, e vale a pena em certas ocasiões.

De resto, enquanto a tarde avançava, com uma chuvinha miúda, os filetes de cherne com arroz de grelos despediam-se da travessa, juntamente com uma boa açorda de bacalhau com espargos verdes. E por que razão escrevo eu apenas "boa"? Para que não duvidem nem julguem que exagero; na verdade, estava mesmo muito boa. O bacalhau à Narcisa, minhotinho, completa a lista de escolhas de peixe do dia, juntamente com o polvo cozido com todos, o bife de atum frito com alho, sonhos de garoupa com açorda de piso de poejo, e ainda - vindas da grelha - garoupa, dourada e robalinho. Nas carnes, o cozido de grão manda às quartas-feiras, de ascen­dência alentejana, enquanto outros esperam pelo empadão de javali, pelo cabritinho assado à padeiro (muito bom, com batatinhas farinhentas, de forno), pelo arroz de cabidela, pelas plumas de porco preto, pela picanha grelhada ou pelo bife argentino (uma modalidade de "bife de chorizo"), além de uma alheira de caça (a que não devia ter sido tirada a "pele", mas enfim, é moda lisboeta andar a fritar alheiras em vez de as meter no forno ou passar pelas brasas...).

Não sei se este Jacinto é o de 'A Cidade e as Serras', mas que tem apetite, isso é uma evidência. Há restaurantes que se revelam uma surpresa muito agradável. Aconteceu comigo, acontece com toda a gente. Mas, no meu caso, estou convencido. Excelentes vinhos, além do mais.

PS - Querem que eu fale das sobremesas? Não tive tempo, mas o leitor que imagine.

À Lupa
Vinhos: * * *
Digestivos: * * *
Acesso: * * *
Decoração: * * *
Serviço: * * *
Acolhimento: * * *
Mesa: * * *
Ruído da sala: * * *
Ar condicionado: * * *

Garrafeira
Vinhos tintos: 120
Vinhos brancos: 30
Espumantes & Champanhes: 10
Aguardentes portuguesas: 20
Colheitas tardias e moscatéis: 6
Portos & Madeiras: 20
Uísques: 30

Outros dados
Charutos: sim
Estacionamento: relativamente fácil
Levar crianças: sim
Área de não fumadores: não
Reserva: muito aconselhável
Preço médio: 22 Euros

JACINTO
Av. Ventura Terra, 2
1600-781 Lisboa
Tel: 217 591 728
Encerra aos domingos

in Revista Notícias Sábado – 7 de Julho 2007

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