julho 29, 2007

A Casa Fernando Pessoa estava cheia de pó

Francisco José Viegas, director da casa Fernando Pessoa, diz que quando chegou à Rua Coelho da Rocha em Fevereiro de 2006 encontrou a casa cheia de pó, sem actividades programadas. Em ano e meio de trabalho conseguiu trazer gente à Casa Fernando Pessoa, envolver as pessoas de Campo de Ourique e de Lisboa em muitas iniciativas, sempre com pouco dinheiro. E realça o facto dos funcionários da instituição terem abdicado de horas extraordinárias para manter a casa aberta à noite.


Correio da Manhã – A crise da Câmara de Lisboa afectou o trabalho da Casa Fernando Pessoa?

Francisco José Viegas – Afectou. A partir de Março, Abril, afectou. Tínhamos programado uma série de actividades, que se chamava “Lisboa, Cidade do Livro”, que iriam animar a cidade desde 22 de Abril até à abertura da Feira do Livro. Eram duzentas e tal actividades espalhadas pela cidade. As mais visíveis, como a vinda de escritores estrangeiros e três ou quatro ciclos de conferências, foram anuladas porque não havia verbas disponíveis.

- Não havia dinheiro.

- Não havia. No entanto, “Lisboa Cidade do Livro” decorreu e aconteceram cerca de cento e quarenta actividades. Com normalidade. Não foram as mais vistosas. Tínhamos previsto a vinda de dezasseis escritores estrangeiros, mas como não havia dinheiro foi tudo anulado.

- E desde a queda da Câmara em Maio até agora como tem sido a vida nesta casa?

- Mantivemos uma actividade absolutamente normal. Todas as iniciativas programadas, conferências, ciclos, debates, exposições, foram todas feitas. Sem um cêntimo. Tivemos aqui a semana de Cabo Verde só com o material da casa e o apoio da embaixada de Cabo Verde, para a vinda de escritores, para a música e exposições. Não gastámos um cêntimo. E para outras iniciativas recorremos a apoios externos, pontuais. Repare que em Maio tivemos, em média, uma iniciativa e meia por dia, o que é muito acima do normal e do que fizemos o ano passado.

- Como é que a Casa Fernando Pessoa conseguiu, no meio de uma crise financeira e política da Câmara, manter a sua actividade com um orçamento muito reduzido?

- Mesmo sendo reduzido teve um corte de 25 por cento, que foi o corte que abrangeu todos os serviços do pelouro da Cultura da Câmara.

- Esse corte foi em 2006 ou já este ano?

- Eu entrei em Fevereiro de 2006 e para 2007 houve um corte de 25 por cento em toda a direcção municipal de cultura. Mas eu não me queixo. Eu sabia ao que vinha. É muito fácil ser-se programador cultural ou ser-se gestor de bens culturais ou de instituições culturais com um orçamento grande. Aí há uma margem para se programar a nosso belo prazer, segundo uma política de gosto e de captação de público.

- E aqui, como é que ultrapassou a falta de dinheiro?

- O que nós fizemos foi, com os meios que tínhamos na casa e com o esforço empenhado do núcleo de pessoas desta instituição, trazer gente à Casa Fernando Pessoa. Foi uma estratégia definida com os responsáveis da Câmara. No primeiro ano, em 2006, era necessário reactivar a casa. A Casa Fernando Pessoa estava cheia de pó.

- Cheia de pó? A Casa Fernando Pessoa estava morta?

- Não havia actividades programadas.

- Estava morta?

- Era uma casa sem actividades programadas. Havia vários processos em curso, para iniciativas mais ou menos institucionais, colaborações, mas não havia nada programado. Logo em Fevereiro de 2006 tivemos logo várias iniciativas, apresentação de livros, debates, conferências e isso com o mínimo de custos. O objectivo nesse primeiro ano foi encher a casa. Fazer da Casa Fernando Pessoa um lugar marcante na geografia de Campo de Ourique e também na geografia da cidade.

- E com as escolas? Conseguiram dar a conhecer a casa aos jovens?

- Quando se fala em trazer novos públicos, em criar públicos, a primeira coisa que é preciso fazer é trazê-los, chamá-los. A casa tem uma biblioteca, um espólio de objectos pessoais de Fernando Pessoa, que é um incentivo às visitas tradicionais, de turistas, de escolas – temos quatro escolas por semana, as manhãs estão sempre cheias -, temos um grupo de investigadores estrangeiros, um auditório e um espaço para exposições. Tivemos que animar isto tudo. Mas sabíamos que no primeiro ano não tínhamos dinheiro para investir nas relações internacionais e em outros projectos muito importantes.

- Ficaram pela limpeza do pó?

- O que nós fizemos foi tirar o pó, limpar a casa, tirar o cheiro a vazio. E esse objectivo foi cumprido. Abrimos a casa. A programação não foi feita de dentro para fora, fomos perguntar às pessoas, como as universidades e as editoras, o que é que esta casa lhes poderia oferecer. E fizemos outra coisa. Ateliers de leitura e escrita para crianças, que repetimos este ano. Exactamente para criar novos públicos. E fizemos isto em colaboração com a Junta de Freguesia de Santo Contestável, aqui em Campo de Ourique. Este ano abrimos essa experiência a outras juntas.

- Para o ano vai repetir a essa experiência?

- Não só vamos repetir como vamos fazer uma coisa inovadora: ateliers de leitura e de escrita para adolescentes durante as férias escolares do Carnaval e da Páscoa. Uma altura em que os alunos se estão a preparar para os exames de português.

- Qual foi a adesão a esses ateliers?

- Sempre esgotados. As inscrições abriam e fechavam imediatamente. E foram feitos com pessoas da casa. Não houve recurso a meios exteriores. A Câmara apoiou-nos com os lanches para as crianças, por exemplo. E no fim desse trabalho o mais importante é o facto de cem crianças terem ficado a saber quem era Fernando Pessoa, que recitavam três, quatro, cinco quadras de cor, que escreviam versos do Pessoa e que fizeram as suas próprias quadras.

- Estou a ouvi-lo e a pensar no queixume permanente de muitos agentes culturais sobre a falta de dinheiro como justificação para tudo, principalmente para o que não se faz.

- Esse é um argumento para a conquista do poder. Quer dizer. É muito bom ter o poder de se decidir que programação é que se faz. O programador tem um poder imenso. Decide qual é a política de gosto de uma determinada instituição. O que nós fizemos foi abrir completamente a estrutura. Perguntar o que é que diversas entidades podiam fazer pela Casa Fernando Pessoa. E ao fim de três ou quatro meses tínhamos editores a propor-nos ciclos sobre isto ou aquilo. E aí vimos que era possível fazer muita coisa.

- Sem custos astronómicos e desculpas de falta de dinheiro.

- Exacto. Lembro-me de um debate aqui na casa, na presença da ministra da Cultura, sobre política cultural em que havia três, quatro participantes que se queixavam que as suas instituições ainda não tinham os dinheiros prometidos. Eu estava aqui como espectador e ouvia falar em duzentos, trezentos, quatrocentos mil euros, já tinha milhões de euros na cabeça, e disse-lhes que esse dinheiro todo correspondia ao orçamento anual, bienal da Casa Fernando Pessoa.

- Qual é o orçamento da Casa Fernando Pessoa este ano?

- Em 2007 não temos ainda ideia de qual é o orçamento. Houve um grande esforço para disciplinar os gastos na Câmara, nomeadamente na área cultural, o que foi muito bom. Mas no primeiro ano tivemos 250 mil euros, dos quais gastámos cerca de 60 mil. Só para ter uma ideia, de Abril até agora devemos ter gasto, no máximo, quatro a cinco mil euros.

- É extraordinário.

- Em programação. Não chegámos a cinco mil euros.

- Não acha que se poderia fazer muito mais com os muitos milhões que o Estado atribui à cultura a todos os níveis, seja ao nível do poder central ou do poder local?

- Sabe que há uma indústria cultural que vive necessariamente dos dinheiros do Estado.

- Mas é uma indústria muito fechada, só para alguns, que apanha tudo o que é subsídio estatal.

- É uma indústria que alimenta uma clientela.

- Clientela que vive do Estado e protesta muito.

- Eu desconfio sempre quando há protestos colectivos dos intelectuais contra o Ministério da Cultura, por exemplo. Há de certeza subsídios pelo meio. Eu desconfio sempre muito disso. Acho que é possível trabalhar de outra maneira. Não como nós fizemos, porque é esgotante.

- E teve a colaboração dos funcionários? Diz-se tão mal dos funcionários da Câmara.

- Deixe-me dar-lhe um exemplo. Se não fosse o esforço das pessoas da casa nós fecharíamos todos os dias às seis da tarde.

- Seis da tarde? Não há funcionários suficientes?

- Não havia pessoas. E como não estamos autorizados a pagar horas extraordinárias tivemos que encontrar uma solução de compromisso com as pessoas da casa, com os trabalhadores da casa a liderar.

- Quantos funcionários tem a Casa Fernando Pessoa?

- São dez pessoas, que abdicaram das horas extraordinárias para que pudéssemos ter iniciativas até às oito da noite ou até à meia-noite, com uma grande flexibilidade de horários. Eu percebi que era uma situação injusta, estar a pedir-lhes este sacrifício, mas a verdade é que sem essa disponibilidade a casa fechava às seis da tarde. Não tinha hipóteses.

- Essa foi uma boa surpresa quando aqui chegou?

- Foi. Eu sabia que a casa não tinha autonomia financeira, que havia problemas nos pagamentos a fornecedores, até porque as nossas verbas são insignificantes no universo da Câmara e por isso mesmo pensámos revitalizar a casa no primeiro ano e no segundo, que era este, estabelecer pontes para iniciativas internacionais. Fizemos isso com o Instituto Espanhol, fizemos isso em Buenos Aires, fizemos isso no Brasil.

- O Brasil adora Fernando Pessoa.

- Com o então prefeito Serra de São Paulo chegou a haver uma conversa muito informal sobre a possibilidade de se criar uma Casa Fernando Pessoa na cidade. Pessoa é mais lido no Brasil do que em Portugal.

- Custava muito dinheiro?

- Era um investimento mínimo porque quer o governo de São Paulo como a prefeitura estariam disponíveis para fazer isso.

- O projecto está a andar ou não?

- Não. Era impossível, Tínhamos necessidades elementares aqui na casa. E projectos, como a recuperação do jardim, do restaurante e da cafetaria, que traria muito mais público se estivessem abertos. As obras arrancariam até final deste ano, temos projectos executados, não são obras faraónicas e seria este ano também que lançaríamos uma obra fundamental, que era o anuário de Pessoa.

- Tudo com pouco dinheiro?

- Foi outra surpresa para mim. Na Casa Fernando Pessoa pode fazer-se muito com pouco dinheiro, menos do que eu próprio supunha.

- Falou da grande disponibilidade dos funcionários. Como é que isso foi possível aqui e não é possível na globalidade da Câmara?

- É uma questão de abertura às pessoas.

- De abertura?

- Da maneira como se tratam as pessoas. Da maneira como se responsabilizam as pessoas. Todos temos a ideia do monstro do funcionalismo público. Mas a verdade é que as pessoas são mal tratadas. Não são responsabilizadas. Não são chamadas a fazer propostas. Nós fazemos reuniões periódicas com todos. Fizemos uma festa no aniversário da casa com duas mil pessoas e foi tudo decidido por todos. Ao mínimo pormenor. A programação, a convocação dos meios, tudo.

- E tem o apoio de outros serviços da Câmara?

- A Câmara tem uma série de meios ao nosso dispor. Muito do que íamos fazer dependia em grande parte da colaboração da imprensa municipal. Independentemente do que podemos pensar sobre o peso, a falta de mobilidade desses departamentos, desde que as pessoas sejam motivadas é possível fazer muita coisa. E nós tivemos uma boa colaboração da imprensa municipal porque viam que nós estávamos interessados, que nos preocupávamos, que íamos lá. E tivemos sempre tudo pronto a horas. O que se faz aqui é possível fazer em outros departamentos. As pessoas estão sedentas de um pouco de organização.

- Só organização?

- As pessoas também estão a precisar de serem convocadas. De serem chamadas a participar nas iniciativas. Como aqui, em que todos fazemos de tudo um pouco, de uma forma de alguma maneira autogestionária.

- Essa disponibilidade dos funcionários surpreendeu-o?

- Foi uma surpresa para mim.

- Está a gostar desta experiência?

- Este ano e meio foi muito bom. Estou a gostar. E estou a gostar também pelo facto das pessoas de Campo de Ourique terem descoberto esta casa e gostam de ficar, de assistir e de ficar por aqui até às duas da manhã. Veja a festa do lançamento do livro de Agualusa. Estiveram aqui 500 pessoas, por todos os espaços, até às duas da manhã. Depois desta fase, de termos conquistado o público, gostaríamos de avançar para os projectos que já lhe referi, nomeadamente na área internacional.

- Com o Brasil na primeira linha.

- As relações internacionais. Temos hipóteses de assinar vários protocolos com universidades brasileiras. Felizmente temos um excelente embaixador, que é o Francisco Seixas da Costa, que mobilizou tudo e todos. Além disso temos um projecto de um kit móvel de uma exposição desenhado pelo Henrique Cayate em espanhol, inglês e português que é uma caixa e que pode ir pela mala diplomática para todo o mundo. Temos já pedidos da Venezuela, Argentina, Brasil, Marrocos, Angola, Moçambique, Uruguai, Estados Unidos. Tudo isto com meios muito reduzidos.

- Está a falar de quanto dinheiro?

- Nós fazemos isto por dez mil euros.

- Quer continuar aqui na Casa?

- Naturalmente que quando entrar a nova equipa da Câmara direi o que é que se está a fazer aqui na casa e fico à espera do que decidirem. Tenho um contrato anual, que é renovado todos os anos, que acaba em Fevereiro de 2008, mas aceito qualquer decisão. A minha vida nunca dependeu destes cargos.

- Mas pessoalmente gostaria de ficar.

- Eu fiquei fascinado com o projecto. E acho que é possível fazer muito mais coisas, as bases estão lançadas. E a base é a Casa Fernando Pessoa. Funciona. Tem gente. Tem ruído. Sabe que a nossa preocupação era a reacção dos vizinhos pelo facto de estarmos aqui até à uma da manhã. Com música, barulho, etc. E uma vez fui falar com um dos vizinhos e avisei-o que íamos ter uma iniciativa que deveria acabar tarde. E sabe qual foi a resposta dele? Finalmente há vida nessa casa.

- Há vida na Casa Fernando Pessoa. Mas Pessoa estava muito esquecido nesta casa?

- Temos de perceber a fortuna, a riqueza de termos uma coisa chamada Fernando Pessoa. Não serve só como um emblema. Serve como um motivo para uma coisa muito mais ampla. Um dos nossos projectos, que ainda não lançámos, é a “Lisboa, cidade Pessoa”. Uma iniciativa internacional.

- Pessoa é uma marca com enorme valor.

- Pessoa é uma marca fundamental. E se relacionarmos isso com Lisboa temos uma campanha notável. Não é preciso inventar nada. Temos tudo feito. Até temos a sorte de Pessoa rimar com Lisboa. E às vezes até digo a brincar que um dia vamos propor à Câmara que substitua os corvos por Pessoa.

- O escritor Francisco José Viegas está a escrever um novo romance, apesar do trabalho nesta casa?

- Vai sair um livro, provavelmente no fim da próxima Primavera, a continuação das aventuras de Jaime Ramos, um novo policial que em princípio se chamará “O Mar em Casablanca”. Estou a escrevê-lo de madrugada. Das quatro da manhã até as dez. Depois venho para aqui.

UM CIGARRO NA CONVERSA

Em primeiro lugar o indispensável registo de interesses. O jornalista do CM é amigo do jornalista e escritor Francisco José Viegas. Trabalhou com ele num semanário de curta duração, ‘O Liberal’, e esteve no mesmo grupo editorial durante alguns anos. Pelo caminho aconteceram muitos encontros. À volta da mesa, de uns copos, de boas conversas.

O director da Casa Fernando Pessoa gosta da vida. A cultura passa pela gastronomia, pelas viagens, pelos poemas, pelos romances e por essa figura notável do inspector Jaime Ramos que o acompanha em vários policiais. Mas também passa por umas cigarrilhas, uns charutos ou cigarros. Sempre. Ou não fosse Francisco José Viegas um admirador de Fernando Pessoa.

Na Casa, como lhe chama, há espaços para fumadores e não fumadores. Mas na entrevista não houve lugar para o politicamente correcto muito estúpido dos nossos dias. As fotografias revelam isso mesmo. A verdade de uma entrevista que acabou por ser uma boa conversa.

in Jornal Correio da Manhã – 29 Julho 2007

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