agosto 08, 2007

Crimes de Verão


«HÁ BARCOS QUE TÊM O DESTINO TRAÇADO», disse o homem mais alto – o de óculos escuros – para o outro, que seguia atrás, com o charuto pendente dos dedos. Ima­ginara-o mais atarracado e mais magro, mas quando ele apareceu, nessa manhã, surpreendeu-o também que ele falasse tão pouco e tivesse aquele ar cansado de quem atravessou o país, ou pelo menos o Alentejo, para lhe dizer que estávamos em Agosto e que isso era uma grande contrarieda­de. Não foi bem assim. Mas na altura pareceu-lhe.

«Agosto é o mês mais fodido.»
Ele olhou-o então, de frente e de baixo para cima (porque estava sentado e o outro de pé) e não pôde deixar escapar um sorriso.
«E Abril é o mês mais cruel», disse Alexandre Monteiro, como se fosse a segunda parte de um diálogo, esperando resposta. Mas o outro não respondeu ao sorriso. Não respondeu a nada, aliás, limitando-se a acender o pequeno charuto com um fósforo que re­tirou de uma caixa. Só então o olhou para recitar, como se estivesse numa esquadra:
«Homicídio qualificado, profanação e ocultação de cadáver, des­truição de bens, ataque em alto mar, roubo, utilização de drogas.»
«Não foi em alto mar», disse, mas o outro não ligou.
«O alto mar é onde os barcos andam.»
«Não é isso. Eles podiam tê-lo morto mais perto da terra e levá-lo depois para o alto mar.»
«Eu sei. Mas, para mim, foi já longe de terra. É onde já não tenho pé.»
«Não gosta do mar?», Alexandre Monteiro olhando-o de novo, retomando aquela espécie de conversa.
«Não», disse ele ao levantar-se. «Nem de algas, nem de rochas escuras, nem de Agosto. Nem de naufrágios. Muito menos de náu­fragos. Já há malucos suficientes em terra.»
«Estranho, muito estranho. Nunca gostou do mar?», voltou Ale­xandre Monteiro.
«Já», murmurou o outro. «Mas foi há muito tempo.»
«Então, que o interessa neste caso? Só o crime? Saber quem ma­tou e porque matou?»
«Interesso-me pela vida dos outros. É a coisa que mais interes­sa um polícia. Os polícias interessam-se cada vez mais por sexo, informática, filosofia, direito, vidas obscuras, hábitos conjugais, esoterismo.»
«Uma espécie de enciclopedistas.»
«Uma espécie. Qualquer dia vamos para a ilha da Páscoa estudar
rongorongo. Quando posso ver o barco?»
«Amanhã, se quiser. Está selado à ordem do tribunal, e não vai encontrar nada. Tudo o que havia para descobrir está já descrito nos relatórios e no processo. Análises de DNA, inventário, mapas, tudo. Até a quantidade de provisões.»
«Isso interessa-me, as provisões.»
«Davam para um banquete.»
«Hoje em dia, com a cozinha de fusão, tudo se faz», ouviu-o ainda comentar. Já lhe tinham falado de Jaime Ramos, mas supunha que era outra pessoa.
«Havia três comboios depois dessa hora. Apanharam o que che­gou a Olhão um pouco depois do meio-dia. Exactamente aqui, em Vila Real de Santo António.»
«De onde vieram antes?», perguntou Jaime Ramos.
«De Espanha. Só se pode vir de Espanha, a menos que gostassem das vistas e tivessem ido fazer turismo. Nunca se sabe. Hoje em dia há surpresas em todo o lado.»
Alexandre Monteiro não gostava do fumo do charuto, nem apre­ciava o desleixo do outro. Qualquer investigador seria melhor do que este homem vestido de jeans, T-shirt, e um blusão azul cheio de vincos. Mas ele não era bem um investigador.
«Deixaram o carro aqui», murmurou. Continuava sempre a mur­murar, como tinha murmurado durante a viagem entre Faro e Vila Real de Sto. António, de vez em quando olhando à direita, como se estivesse à espera que o mar subisse terra dentro para engolir torres, aldeamentos, campos de golfe, sapatarias, bares de alterne e camiões carregados de materiais de construção. Quando chegaram a Vila Real saiu do carro e perguntou a que distância ficava Cádis.
«Cádis? Duas horas, mais ou menos.»
«E o carro, como apareceu aqui?»
«Foi descoberto a 4 de Setembro, três semanas depois. É normal aparecerem carros abandonados deste lado da fronteira. Até hou­ve espanhóis que vinham cá deixar os carros velhos, os destroços que já não queriam.»
«E barcos?»
«Barcos nunca deixaram aqui.»:
«Mas pode vir a acontecer. Têm-me dito que no Algarve tem acontecido um pouco de tudo.»

JAIME RAMOS ENCOSTOU-SE À JANELA DO HOTEL para ver melhor como o dia ia nascendo. Uma luz ténue, azulada, luzes de carros, garga­lhadas na rua, um zumbido. Desagradava-lhe aquele caso e todos os materiais que coleccionara. Ele chamava materiais de colecção às pastas meticulosas que Isaltino de Jesus lhe deixava na secretá­ria, debaixo de um dos cinzeiros que não tinha sido atingido pêlos seus charutos.
«Está aqui tudo, chefe.»
Estava, quase sempre. Fotocópias de jornais, fotografias, papéis minuciosamente procurados nos arquivos e, às vezes, ilegalmente retirados de processos que estavam a milhares de quilómetros. Como este, de Cádis. Puerto Sherry. Playa de Ia Puntilla. Uma fotografia de um barco, um trimarã esperando que a praia-mar o devolvesse à ondulação.
«Como consegues tu isto, Isaltino?»
«Com sorte, chefe, com sorte.»
Mas Jaime Ramos sabia que não se tratava apenas de sorte. Havia um incêndio no olhar de Isaltino ao aproximar-se do gabinete: pri­meiro olhava para o rosto de Teofilo Cubillas, pendurado na parede – um velho poster quase descolorido do Norte Desportivo que Jaime Ramos arrastava consigo de gabinete em gabinete, em mudanças que lhe desorganizavam a secretária e a paciência; depois, olhava com ar de censura para a secretária desarrumada; finalmente, falava.
«Chefe. Ontem andei a abrir-lhe o caminho», ajeitando a camisa de manga curta, puxando ligeiramente a perna das calças antes de se sentar. Jaime Ramos não lhe invejava nem a disciplina nem a ar­rumação – considerava ambas resultado de um talento providen­cial que tocara a nova pequena-burguesia dos subúrbios, gente que tinha subido a pulso em carreiras insignificantes e que não largava os velhos hábitos dos pais. Isaltino era parte do antigo-Porto.
«Chamam-no ao Algarve, chefe, é melhor levar isto.»
«É a nossa internacionalização, Isaltino. Já vamos ao Algarve.»
«Algarve é Portugal, chefe.»
«Talvez, Isaltino, talvez. Para lá do mercado de Espinho e da ria de Aveiro é tudo uma grande incógnita.»

Jaime Ramos chegara nessa manhã e percorrera a costa do Algarve ouvindo o relato daquele homem diligente que o recebera e lhe pas­sara as informações do processo. Alexandre Monteiro usava gravata e um fato que mostrava como a polícia, agora, se incomodava com a imagem que deixava nas fotografias dos jornais, à mistura com aque­la linguagem dos novos bacharéis de Direito processual. Na viagem entre Campanhã e Faro lera todos os materiais de colecção reunidos por Isaltino de Jesus. À medida que se aproximava do Algarve sentia como era inexplicável aquela simplicidade de um crime cometido por gente inábil que tinha entrado num barco e matara o tripulante depois de o deixar amarrado e à deriva no mar. E, mentalmente, re­constituíra todo o guião preparado para explicar um crime simples e banal – um homem e uma mulher de um lado, um belga solitário do outro. Mas a solidão deste solitário não era a solidão dos simples, Jaime Ramos pressentia. Até que viu o sublinhado providencial de Isaltino, traçado sobre aquele nome: Cádis.
E o que Cádis lhe lembrava não vinha em nenhum dos processos e ainda não fora mencionado nos jornais. Muros fenícios, ruínas de Cartago, gregos e árabes, e o ruído do mar. Ele lembrava-se do ruído do mar porque Rosa gostava de camarões grelhados como se comiam em Puerto de Santa Maria, e um dia quiseram conhecer o Mediterrâneo.
«O mar é aquela quantidade de água azul», ela, Rosa, mostran­do-lhe o Mediterrâneo. Teria sido há dois, três anos, pela Páscoa. Mas o seu Mediterrâneo não era o daquele trimarã que parecia abandonado na Playa de Ia Puntilla, e que depois entrou em Puerto Sherry. Eles não sabiam isso. Ele sabia. Isaltino tinha descoberto sem entrar nesses delírios, conversa sobre naufrágios e sobre as aventuras no mar. Ele sabia que a história não se poderia reduzir a uma mulher e um homem entrando num barco para matar o dono, deixando-o amarrado e entregue à tempestade que havia de transformá-lo num náufrago. Era isso que o interessava: a onda que se elevava mais alto que as outras. Esse resumo podia facilitar as coisas. Mas a vida não é fácil.

TRÊS MULHERES ESTIVERAM NO BARCO NAQUELA NOITE. Jaime Ramos está sentado num muro diante da penumbra da ilha da Armona e ouve o ruído de um pequeno barco que se afasta do cais, naquela noite de Agosto, levando dois passageiros e caixas de provisões. Um banquete. Ouve vozes e risos. Ouve a água batendo no casco do trimarã, fundeado ao largo, entre as sombras de Agosto. Brisas que volteiam nos pequenos golfos, baías, enseadas, entre ondula­ções. A meia-idade no Verão, pensa ele reparando nas fotografias daquele homem de sessenta anos que dois dias depois é retirado das águas, amarrado como num cerimonial erótico. Três mulhe­res, talvez dois homens apenas. Um velho funcionário público belga, retirado com as suas economias, fascinado pelo azul do Me­diterrâneo, inútil longe de casa, do seu trabalho insignificante.
Cerimonial erótico, expressão que não quer dizer nada. Um atrevimento súbito no Mediterrâneo, em plena madrugada, em plena tontura da embriaguez. Os fantasmas do Mediterrâneo le­vantam-se das águas, naquela tepidez de Agosto.

«Não gosta do mar?», Alexandre Montei­ro perguntara-lhe.
«Não.» Mas não era realmente verdade, tratava-se apenas de uma defesa contra o perigo da melancolia.
Duas mulheres e um homem tinham atravessado aquele canal no dia seguinte, devolvidos a um aldeamento com açoteias prefabricadas e varrido pelo vento. O único rasto era o daquele casal que fora depois recolhido no alto mar. E Cádis.

A NOTA, DEIXADA POR ISALTINO de Jesus, era uma notícia do Diário de Cadiz, de 12 de Agosto, que assinalava uma «rotura de Ia cadena del ancla que Io tenía fondeado frente a Ia playa de El Aculadero, en Ias proximidades de Puerto Sherry. Su único tripulante, un varón francês de mediana edad que hace un recorrido turístico por Ia costa española, dio aviso de socorro al no poder controlar Ia embarcación que minutos después embarrancaba en ple­na arena de La Puntilla». Há barcos que têm o destino traçado. Nada se teria pas­sado no mar que não fosse uma repetição de um encontro anterior em Cádis. Um marinheiro enviou a mensagem: que «el timos y Ia elice no tienen buena pinta» e teria de ser reparado em Puerto Sherry, onde aquele homem que se recusava a ser velho conheceu o casal.
«Não tem provas disso», comentou Ale­xandre Monteiro, que aproveitou a dúvida para ajeitar o alfinete dourado da gravata.
«Não tenho provas de nada. O mar não é bom para a cabeça das pessoas.» A vida que acaba de qualquer modo, sorriu Jaime Ramos, finalmente. Tudo o que diria um juiz, diante daquele relatório policial que menciona sevícias e tortura e um corpo amarrado. O velho era mau marinheiro e despedia-se da vida.
«O senhor imagina isso só por eles se­rem franceses. Eles mataram-no porque queriam o dinheiro dele. Não se iluda, eles sabiam o que queriam. Não vá em orgias. Quem quer dar uma foda tem bons hotéis em terra.»
Alexandre Monteiro não tinha a imagina­ção prodigiosa daqueles que temem o mar. Mas a vida ronda essa tepidez que tanto se sente em Cádis como em Olhão, como nas sombras da ilha da Armona.
Jaime Ramos concordou, acenando com a cabeça. O mundo estava cheio de maus marinheiros.

in Crimes de Verão – Revista Visão – 2 Agosto 2007