agosto 27, 2007

O tempo em que havia mestres

Eduardo Prado Coelho foi meu professor. Há frases assim, descritivas, banais, que são o retrato mais fiel de uma comoção. Hoje não temos grande respeito pelos professores – ou pelo menos pela própria noção de “respeito pelos professores”. Durante os meus tempos de faculdade, íamos aqui e ali, ouvi-los, aos professores. Assisti à última lição de Vitorino Nemésio, às derradeiras aulas de Jacinto do Prado Coelho, aos últimos seminários de António José Saraiva, por exemplo, com a sensação de estar diante de três das grandes figuras da universidade. O que esperávamos desses momentos não era propriamente a revelação de um saber que nos redimisse ou salvasse no meio da nossa própria ignorância, mas que se confirmasse essa comoção – o “grão da voz” que subia mais alto.

Alterávamos horários e sacrificávamos horas de lazer para atravessar a cidade e escutar António José Saraiva, que nos interrogava e deixava surpreendidos a cada lição dos seus seminários – sobre Vieira, sobre o sebastianismo, sobre a Geração de Setenta. Eu apreciava-lhe o sentido de humor, mas também o sarcasmo, que era uma explosão de fúria num homem generoso e bom. Eram cruéis, os professores. Estes e outros. Os mestres. Nós também éramos diferentes e tínhamos prazer em ouvir, em aprender e em sermos desafiados para outras leituras e recordações.

Às vezes olho para as estantes e vejo os seus livros – títulos que se conservam sempre por mais que mudemos de casa e rearrumemos a biblioteca. E um halo de respeito regressa, uma comoção, qualquer coisa que só se comunica verdadeiramente a quem pode compreender a sensação. O respeito pelos professores. Óscar Lopes, Saraiva, Nemésio, Prado Coelho, Aguiar e Silva, Helena Rocha Pereira, David Mourão-Ferreira, Mário Dionísio, Luís Albuquerque, Vitorino Magalhães Godinho, Serrão, Oliveira Marques, Lindley Cintra. Podíamos não frequentar as suas aulas, mas íamos ouvi-los uma vez por outra. Esse era, aliás, um dos princípios da Universidade: estarmos ali para ouvir, para testar a nossa disponibilidade.

Mas esses eram os nomes de outra geração. Cresci na dúvida sobre o saber, o conhecimento, o ensino, a palavra dos mestres. Um dos nomes derradeiros era Eduardo Prado Coelho, que – repito a menção ao meu orgulho pessoal – foi meu professor. Foi, depois, meu amigo. Por vezes, num artigo, numa declaração, Eduardo referiu-se a mim e dizia: “... que foi meu aluno.” Eu também tinha orgulho nisso. Também alterei os meus horários para, depois de um ano em que fui seu aluno, poder frequentar um dos seminários que dirigia, naqueles fins de tarde comuns, quando os corredores da faculdade se esvaziavam e as pessoas estavam cansadas ou queriam, apenas, voltar para casa. Íamos ouvi-lo como, antes, o líamos: para ver o que dizia EPC. Com o tempo, a maturidade, a vaidade e até a coragem e sobretudo o trabalho, pôde ter desaparecido o fascínio pelo seu discurso, pelas suas citações e leituras, pelo seu brilho, pelas suas opiniões – mas o respeito mantinha-se.

Hoje discorda-se muito antes de estudar, de trabalhar, de guardar silêncio. Nessa altura sabíamos que só se podia discutir sobre o que se tinha estudado verdadeiramente. Só se podia duvidar dos mestres – que tinham duvidado dos seus mestres – depois de ter estudado aquilo que eles ensinavam ou pensavam ou escreviam. Esse era o segredo das “humanidades”. Parte da minha geração teve muito trabalho para duvidar de Eduardo Prado Coelho ou para discordar dele. No momento em que a sua morte gera todo o tipo de excelentes elogios, gostava de guardar esta imagem de EPC. Ele era brilhante, eufórico, fascinante, um leitor infatigável. Eu não concordava com ele em muitas coisas, da política à literatura. Éramos amigos. Mas sobretudo foi meu professor. Íamos ouvi-lo, o que constitui uma homenagem viva. De certa maneira, foi um dos últimos grandes mestres do nosso século.

in Jornal de Notícias – 27 Agosto 2007


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